UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


segunda-feira, 7 de maio de 2007

A UNIVERSIDADE DO ESPETÁCULO*

PERSONAGENS:

R: Reitor (que tem que estar caracterizado com um rabo-de-cavalo, de preferência um rabo-de-cavalo bem grande pra ficar uma coisa tosca e caricatural)
D: Duda, o Marqueteiro
M: Mr. Money, pode ter um sotaque de gringo
S: Representante dos Movimentos Sociais

CENÁRIO: uma mesa e uma cadeira, representando o gabinete do reitor. Pra ilustrar a auto-adoração do reitor, na parede podia ter uma foto dele próprio, que no caso podia ser uma charge numa cartolina grande.


O reitor está sentado em sua cadeira com a cabeça baixa entre as mãos, cheio de tiques nervosos e com ar de preocupação. Duda entra.

D: Mandou chamar, Magnífico?

R: Sim, Duda, eu preciso ter uma conversa muito séria e confidencial com você. Eu preciso de sua avaliação sobre minha atuação enquanto reitor desta universidade, mas eu preciso que você seja absolutamente sincero, está me entendendo?

D: Minha avaliação? Mas por que eu?

R: Ora, Duda, você me acompanha há anos como meu secretário, assessor, assistente de marketing e, principalmente, como meu estilista capilar pessoal e, graças aos seus sábios conselhos, eu posso me orgulhar de ser o reitor com a cabeleira mais lustrosa de todas as universidades federais da Bahia!!! Você é a única pessoa em quem eu posso confiar pra uma opinião realmente sincera!!!

D: Mas o que o Vossa Magnificência quer saber?

R: Duda, Duda, a vida de um reitor é dura, eu relutei muito, mas preciso lhe confessar: EU ESTOU EM CRISE!!! Eu olho o meu histórico impecável como reitor, Duda, mas as pessoas ainda não reconhecem o meu brilhantismo, as pessoas não vêm que eu sou Magnífico, Duda, Magnífico!!! Me responda: eu não revolucionei a história das universidades brasileiras ao ser o primeiro reitor de uma universidade federal a implementar as cotas???

D: Bom, na verdade o senhor foi contra as cotas desde o início, aí vieram as pressões do movimento negro e do movimento estudantil que ocuparam a reitoria e eu lhe aconselhei que seria melhor pra sua imagem mudar de lado taticamente...

R: COMO OUSA??? (Batendo na mesa) Até tu, Duda? (Mudando pra um tom mais amistoso) Duda, meu querido, você sabe que eu posso abrir um processo contra você por calúnia e difamação e lhe demitir???

D: Mas Vossa Magnificência me compreendeu errado, ou melhor, eu me expressei errado, afinal o senhor acabou de se reeleger como o reitor das cotas!!!

R: Hum, assim está bem melhor. Mas me diga, Duda, eu não sou o reitor que teve coragem de expulsar a FBC?

D: Bem, na verdade o senhor defendeu a FBC até a alma, mas aí vieram as pressões do movimento estudantil, o escândalo estourou e, felizmente, eu lhe aconselhei a adotar uma postura mais favorável à sua imagem...

R: Você está querendo insinuar que só porque eu uso de todos os meios escusos possíveis e impossíveis pra a universidade não cobrar a dívida de R$ 32 milhões da FBC eu tenho algum tipo de ligação espúria com a fundação, É ISSO QUE VOCÊ ESTÁ QUERENDO DIZER???

D: De maneira alguma, Magnífico, afinal Vossa Magnificência acaba de se reeleger como o reitor que expulsou a FBC...

R: Ah, bom... Mas, Duda, Duda, marketeiro meu, respondei-me, por favor: existe algum reitor com cabelo mais lustroso que o meu?

D: Impossível, Magnífico...

R: Então, Duda, então!!! Eu tenho tudo pra ser o maior reitor da história dessa universidade, mas não posso ter meu nome com essa marca na História por causa... Por causa daquele MALDITO DO EDGAR SANTOS!!!! MALDITO!!! Eu preciso superar ele e ser o maior reitor da história, Duda, EU PRECISO!!!! (Num tom menos nervoso) E então, alguma idéia???

D: Hum, não sei... O que está me parecendo é que pra algo tão grandioso o senhor teria que mudar a universidade inteira, construir uma nova universidade...

R: Uma nova universidade???

D: Sim, mas temos que trabalhar mais nisso. Agora não temos tempo porque o senhor tem um encontro marcado com Mr. Money, representante dos empresários e do capital internacional.

R: Mr. Money??? Mande entrar agora mesmo!!!

Entra Mr. Money.

R: Mr. Money, é uma honra recebê-lo, a nossa universidade está à venda, digo, está de braços abertos para parcerias favoráveis a ambos os lados...

M: Parcerias favoráveis a ambos os lados diminuem os nossos lucros, estúpido!!!

R: Bom, então que sejam favoráveis só a vocês, nós já nos sentimos felizes de poder ajudar, é uma honra enorme...

M: Cala a boca, idiota!

R: Sim, senhor!

M: Sentado!

R: Oh, muito gentil de sua parte... (Senta)

M: É o seguinte, vou ser breve e claro: o modelo atual de universidade está obsoleto e não interessa mais ao capital. O que nós precisamos é explorar mão-de-obra barata e, com o mercado de trabalho cada vez mais flexível, nós precisamos de trabalhadores mais flexíveis pra que possam ser melhor explorados, e a universidade não está colaborando com isso! Nós precisamos de uma formação que seja ao mesmo tempo mais generalista e mais tecnicista, pra o que o mesmo trabalhador possa desempenhar cada vez mais funções e, assim, tirar a vagas de sues colegas, aumentando o exército de reserva e, consequentemente, baixando o valor da mão-de-obra! E isso já uma tendência no mundo inteiro, é uma diretriz do Banco Mundial, os Estados Unidos já estão muito avançados nesse processo, a Europa também está avançando através do Protocolo de Bolonha, e vocês, aqui, presos à universidade do século XIX!!!

R: M-m-mas como é que eu vou fazer isso? Eu garanto ao senhor que o nosso ensino, nossa pesquisa e nossa extensão já são cada vez mais voltados ao tecnicismo, ao lucro e ao mercado de trabalho!!! Aliás, o exemplo mais bem-sucedido desse processo de privatização interna da universidade pública são as fundações de direito privado, que se utilizam de nosso espaço, nossos laboratórios, nossos professores, nosso conhecimento, nosso status, tudo voltado pra o lucro delas mesmas e, o melhor, sem pagar absolutamente nada à universidade ou, no máximo, repassando migalhas perto do lucro monstruoso delas! É o mais puro neoliberalismo aplicado dentro das universidades públicas, o que resta a privatizar de fato é muito pouco, eu não vejo como podemos ir muito além...

M: De tudo isso eu já sei, estúpido, mas a forma como vocês fazem isso é que está ultrapassada, o modelo atual de vocês de privatização e de subserviência aos interesses do capital está obsoleto, o capitalismo evolui a passos largos, e a universidade tem que acompanhar esse processo! Como vocês vão fazer isso eu não sei, dê seus pulos, o que nós queremos é produtividade e resultados, o que nós precisamos é de uma nova universidade! Passar bem!

Mr. Money se retira.

R: Uma nova universidade??? Mas como é que eu vou fazer isso??? E agora, o que é que eu faço???

D: Depois o senhor pensa nisso, agora está aí fora um representante do governo federal querendo conversar com o senhor.

R: Está bem, está bem, pode mandar entrar.

Entra Mr. Money.

R: Mr. Money? Mas eu esperava um representante do governo federal...

M: Mas sou eu mesmo, é que além de especulador financeiro internacional, empresário e tubarão da educação superior privada, nas horas vagas eu faço bico como assessor do MEC, já que nossos interesses são os mesmos...

R: Pois é uma dupla honra recebê-lo como representante também do governo, nossa universidade está totalmente submissa, digo, à disposição pra colaborar com o que o governo precisar...

M: Pois bem, vou ser curto e grosso: este modelo de universidade pública é muito caro e não interessa mais ao governo. Você bem sabe que nós seguimos caninamente a orientação do Bando Mundial e priorizamos os recursos públicos pra as universidades privadas, como é o caso do FIES e do PROUNI, que, somados, superam em muito o valor investido nas universidades públicas, mas ainda estamos muito longe do ideal. Apesar de todos os esforços históricos desde a ditadura pra sucatear completamente o ensino superior público, por pressão dos movimentos sociais ainda restam uns requícios ultrapassados de preocupação com coisas esdrúxulas e dispendiosas como a qualidade da formação acadêmica! A implantação do Protocolo de Bolonha na Europa é um exemplo maravilhoso da desresponsabilização do Estado com a educação superior pública: lá, nas universidades que já adotam o Protocolo, mesmo o ensino público é pago, e pra baratear os custos eles criaram um ciclo básico de 3 anos com uma formação genérica voltada pra o mercado de trabalho flexível, no qual só é necessário um professor pra uma turma gigantesca, com mais de cem alunos!!! É disso que o governo precisa, o mesmo que as empresas: reduzir os custos aumentando a produtividade e, consequentemente o lucro, que no caso do governo é o superávit primário pra pagar os banqueiros que financiam as nossas campanhas. Lembre que este governo quer colocar seu nome na História desse país como o maior em todos os aspectos, principalmente nas áreas em que não faz nada!!! O governo quer resultados e produtividade, o governo quer uma nova universidade, e você precisa dar um jeito nisso!!!

R: Uma universidade nova, m-m-mas como??? A pouca verba que a gente recebe a gente já destina aos cursos mais elitizados e privatizados, como criar um novo modelo de universidade mais barata?

M: Dê seus pulos, eu quero que você me traga as soluções, não os problemas! Passar bem.

Mr. Money se retira.

R: E agora, o que será de mim???

D: Calma, Magnífico, agora não é hora pra desespero, aí fora tem um bando gente mal vestida dizendo que são de vários movimentos populares e que exigem uma audiência com o senhor senão ocupam a reitoria!

R: Ai, meu Deus, lá vem essa gente rude e mal vestida, bando de baderneiros!!! Eu não já dei as cotas a eles, o que é que esse povo quer mais? Agora só falta eles virem exigir que, além do acesso, a gente dê condições de os negros permanecerem na universidade, daqui a pouco eles vão querer restaurante universitário, bolsas e mais vagas nas residências universitárias!!! Assim não pode, assim não dá!!!

D: Mas tudo isso são reivindicações do movimento estudantil e negro que o senhor prometeu cumprir e até hoje não fez nada...

R: NÃO FIZ NADA??? COMO NÃO FIZ NADA??? Já faz quase dez anos que estou construindo aquele restaurante universitário e você diz que eu não fiz nada???

D: É, por esse ponto de vista...

R: Mas mande esse povinho entrar logo, mas só um representante deles, que mais que isso me dá alergia e faz mal aos meus cabelos lustrosos...

Entra o Representante dos Movimentos Sociais.

R: Pois não?

S: Nós estamos aqui mobilizados porque não agüentamos mais esse modelo de universidade elitista e excludente, cada vez mais privatizada, mais tecnicista, mais sucateada e mais a serviço da capital. O compromisso social estampado nos outdoors é uma farsa, a universidade não tem a mínima preocupação em desenvolver conhcimentos que atendam às demandas populares, as pesquisas são pautadas pelo que as empresas querem, o ensino é cada vez mais rankeador, tecnicista e voltado pra o mercado de trabalho, a extensão está virando sinônimo de cursos pagos, já que estão tentando acabar com as ACC’s, e a assistência estudantil é uma verdadeira piada, as residências universitárias estão a ponto de desabar! Nós queremos uma mudança total, nós queremos uma universidade não apenas nova, mas POPULAR, sem vestibular, com ampliação do número de vagas, com uma formação mais humanística, enfim, uma universidade que atenda às reivindicações históricas dos trabalhadores, dos desempregados e dos excluídos! E nós exigimos uma resposta contundente do senhor com relação a essas reivindicações imediatamente!

R: Her... Bem, eu adoraria, mas infelizmente tenho um outro compromisso inadiável marcado e já estou atrasado, mas eu lhe dou minha palavra de que marcaremos uma outra oportunidade pra conversarmos melhor sobre isso com mais tempo...

S: Pois bem, dessa vez nós vamos embora e vamos deixar aqui um documento com todas as nossas reivindicações pra vocês tomarem as providências, se não formos atendidos a gente ocupa essa reitoria, porque essa situação está chegando ao limite, se a universidade não mudar por bem urgentemente, é o povo que vai fazer ela mudar na marra!!!

O Representante dos Movimentos Sociais se retira.

R: Está vendo, Duda? Está vendo? (Apontando pra fora com cara de desespero) É por isso que eu morro de medo do povo, mais do que de qualquer outra coisa, porque na hora que eles perceberem que se organizando e se unindo eles têm todo o poder nas mãos, nós estaremos ferrados!!! A nossa sorte é que eles não sabem disso e nós, que sabemos, fazemos de tudo pra fragmentar a luta deles, e a universidade tem um papel fundamental nesse processo... É por isso que, de todas as medidas do plano de segurança aprovado há mais de dois anos, a primeira coisa que estou fazendo é cercar a universidade inteira, pra essa gente perceber que não é porque a universidade é pública que ela é do povo!!! Se dependesse só de mim, seria logo uma cerca elétrica!!!

D: Sim, Magnífico, mas é justamente por causa dessa ameaça de a pressão popular explodir a qualquer momento que é mais necessário que nunca o tomarmos uma atitude paliativa pra refrear as pressões...

R: Mas como, Duda, como? Isso só pode ser uma conspiração, uma conspiração pra tirar meu sono e me fazer perder meus cabelos lustrosos, não é possível!!! Estou sendo pressionado de todos os lados, isso deve ser alguma maldição do espírito do desgraçado do Edgard Santos...

D: Calma, Magnífico, faça do limão uma limonada!!! É só juntar todas essas reivindicações num bolo só...

R: Como, anta, se são totalmente inconciliáveis???

D: Veja bem, seus interesses pessoais, os interesses do governo e os dos empresários são os mesmos, o inconciliável são as reivindicações dos movimentos sociais, mas aí é que está seu grande trunfo... O senhor pega o projeto neoliberal de flexibilização da formação da mão-de-obra e de diminuição dos custos, joga uma retórica de esquerda e incorpora algumas bandeiras históricas dos movimentos sociais, tipo fim do vestibular, expansão do número de vagas, formação mais humanística e essas baboseiras todas, mas claro que deturpadas, atendendo aos interesses do capital. Vai atender ao que a direita quer e, ao mesmo tempo, a esquerda não vai ter coragem de ser contra um projeto com algumas de suas reivindicações históricas nos slogans e, se tiverem, é só o senhor tachar eles de retrógrados que são a favor do modelo excludente da universidade do século XIX!!! E pra completar, precisa ser um projeto pop, o senhor precisa ser o reitor show-man, tem que aparecer na grande mídia toda antes de ser discutido dentro da universidade, porque aí já vai ter sido criado um clima de consenso, depois disso, pra dar um ar de democracia, o senhor faz uma palestra em cada unidade, muda um ponto ou outro do projeto pra dizer que houve diálogo e... voilá!!! Estará criado o maior reitor da história desta universidade, quem sabe até do país, já que é bem provável que o governo queira implantar o projeto no país inteiro, se duvidar eles até desistem do Projeto de Reforma Universitária, o nosso projeto é muito melhor e mais profundo... Ah, e nas apresentações do projeto convém falar o mínimo possível sobre o projeto, o ideal é passar pelo menos 90% do tempo falando sobre o histórico da universidade desde Platão, enrolando bastante na parte de Kant, e criticando o modelo atual, que é uma coisa bem mais consensual. É bom também pegar o nome de uns dois medalhões incontestáveis mas que ninguém conhece realmente na área de educação e dizer que o projeto foi inspirado neles, mas tem que ser dois mortos, que é pra não correr o risco de eles lhe desmentirem. Tipo Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, sei lá... Na hora das divergências mesmo, o senhor usa sua milenar técnica de se retirar do espaço porque o tempo acabou. E pra coroar, como todo produto capitalista, precisamos de uma marca nova, uma marca que mostre que os velhos tempos ficaram pra trás... Já sei: vai ser a nossa “Nova Universidade”, que tal???

R: Que “nossa”, meu filho, está maluco? Se enxerga, você é um mero consultor de marketing, a mente pensante aqui sou eu!!! Essa sua idéia de “Nova Universidade” é esdrúxula e ridícula, a minha sim é brilhante: eu vou fazer exatamente o que os empresários e o governo querem, mas incorporando as bandeiras dos movimentos sociais de maneira deturpada, atendendo aos interesses do capital, tudo com um projeto de divulgação super-pop e, adivinhe, estará pronto o meu projeto: o “UNIVERSIDADE NOVA”!!!! HUAHAHAUHUAH!!! Eu sou um gênio!!! UNIVERSIDADE NOVA!!! Eu vou entrar pra a História, eu venci Edgard Santos!!!! UAHUAHUAHUHAHAHA (Risada fantasmagórica de vilão de desenho animado)

FIM

*Por Henrique Souza, militante da Comuna

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi! Gostaria de saber como entrar em contato com o grupo que organiza este blog.

Universidade Popular disse...

Olá, você pode deixar aqui seu e-mail ou mandar uma msg. para popular.universidade@gmail.com. Abraços!