UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


quarta-feira, 23 de maio de 2007

"Compromisso Social" ou Escola-prisão?


[Henrique Souza – Militante do SAJU e d@ Comuna]

[Daniel Caribé (colaborador) – Militante d@ Comuna]


Enquanto o reitor da UFBA convence boa parte do país a aderir ao seu projeto "democrático", implementa na sua própria casa medidas que separam a universidade do resto da sociedade. Enquanto este mesmo reitor exibe em todos os outdoors o "compromisso social" da sua universidade, constrói cercas por todos os lados.

No momento em que o reitor da Universidade Federal da Bahia alardeia por toda a grande mídia nacional a pretensa preocupação de seu projeto Universidade Nova com a democratização do acesso às instituições de ensino superior, a prática nos dá um ótimo exemplo da "novidade" do tipo de democratização do acesso que se busca, com a universidade sendo totalmente cercada com grades que tanto prendem os que estão dentro e querem uma universidade mais livre e próxima do povo, quanto afasta e exclui ainda mais esse mesmo povo que está do lado de fora da universidade. Para uma questão tão complexa como a segurança pública, a UFBA, o "centro do saber acadêmico", que tanto se orgulha de colocar nos outdoors o seu "compromisso social", adota a solução mais superficial e inócua possível: muros e grades, que a História já demonstra há milênios que sempre acabam por ser derrubados.


A primeira coisa que salta à vista nesse processo de "fortificação" da Universidade é que a segurança que se busca é meramente patrimonial, ou seja, visa evitar que se roubem os sons dos carros (de quem tem carro, óbvio), pois em absolutamente nada essas grades ajudam no combate aos assaltos e estupros a que @s estudantes são submetidos freqüentemente, em especial quem precisa pegar ônibus: a iluminação é praticamente inexistente em diversos pontos; o mato de tão grande mais parece uma floresta; as escadas totalmente destruídas; enfim, medidas extremamente simples, como resolver esses problemas, poderiam oferecer uma segurança muito a maior a quem efetivamente precisa de segurança, as pessoas, não os carros.


Ah, e também medidas mais muito baratas, pois o "Programa Integrado de Segurança", elaborado em 2002 pela Pró-Reitoria de Planejamento e Administração e que serviu de base para o plano aprovado pelo CONSUNI em 2004, previa 12 medidas gerais para melhorar a segurança na universidade. Só agora, no entanto, a primeira dessas medidas começa a ser implementada, e é justamente a mais cara e inútil de todas. No orçamento de 5 anos atrás, murar e gradear os campi da UFBA em Salvador custaria R$ 1.726.032,94 (quase dois milhões de reais!), imaginem quanto esse montante deve estar em valores atualizados... Os próximos passos desse processo nós já sabemos e já vimos outras vezes em outros âmbitos: câmeras nos corredores (como já existe em ADM e no PAF), polícia militar e civil dentro do campus (conforme notícia do UFBA em Pauta de 16/05/07), restrição do acesso por meio de catracas eletrônicas (como se pretende implantar em ADM no próximo semestre), enfim, uma verdadeira "escalada contra o crime".


Numa análise mais geral, no entanto, o que o reitor da UFBA está fazendo agora até que vai bem no sentido do que está sendo feito no resto do país e do mundo: Israel construindo seu muro pra se "proteger" dos palestinos, os Estados Unidos construindo seu muro pra se "proteger" dos mexicanos, as classe média e alta brasileira cada vez mais se "escondendo" em condomínios fechados murados e gradeados para se "proteger" do povo pobre e preto. Faz tudo parte da mesma lógica de "medo do povo", a mesma lógica que faz agora a grande mídia nacional bradar pelo anseio da "sociedade civil" de diminuição da maioridade penal, de leis penais cada vez mais severas e de criminalização dos movimentos sociais. Mas esse "medo" não é sem fundamento, foi causado por essas mesmas classes, pois num Estado cada vez mais neoliberal e mais injusto, é necessário um sistema penal cada vez mais rígido e mais muros, grades e vidros blindados para "conter" o povo.



Universidade Nova = Escola-prisão


Se "polícia é para quem precisa",

as grades são para quem?


No final do século XVIII, Jeremy Bentham elaborou uma idéia que seria a marca da modernidade. Escolas, hospitais, fábricas e prisões deveriam ter a mesma arquitetura e a mesma lógica de funcionamento. Os muros e grades deveriam ser erguidos para todos! Entretanto, o objetivo não era somente o de inibir que o de dentro saia, mas que o de fora entre. Como um bom utilitarista que era, Bentham defendia uma classificação total da sociedade, de todos os homens e mulheres, para que cada um tivesse nesta sociedade sua função claramente definida. A este projeto deu o nome de Panóptico, porque de dentro dele, de uma torre central, qualquer um estudante-prisioneiro deveria ser vigiado em todos os seus movimentos, ou pior: se auto-vigiar, já que a presença do inspetor na torre central não era garantida. O Panóptico deveria servir não só para tirar o máximo dos seus cativos, mas para mostrar para toda a sociedade como deveria ser administrada a vida no novo mundo (ou no "mundo novo", como preferiria o nosso reitor) que se erguia.


Então, finalmente a UFBA adentra na modernidade idealizada por Bentham! Cercas para coibir a circulação estão a ser construídas: ninguém entra, ninguém sai. Uma reestruturação da arquitetura se apresenta para construir uma torre central no qual a burocracia acadêmica, os novos inspetores, pode vigiar tudo o que esteja a ser produzido na sua escola-prisão. A construção de uma ciência útil, não socialmente útil, mas útil para a reprodução do capital é colocada como meta. E, por fim, uma classificação de professores e estudantes, conforme o andar que ocupe na hierarquia da Universidade Nova de desenha: 1) estudante/professor Bacharel Interdisciplinar; 2) estudante/professor qualificado; 3) estudante/professor proprietário do saber, etc.


Como séculos depois Foucault observou, a utilidade não está na fortificação em si, mas na introjeção das grades na mente de cada um (biopoder). Por isso, podemos fazer uma analogia entre a aparente inutilidade desse processo de "fortificação" da UFBA com a análise que este mesmo autor faz sobre o aparente fracasso do sistema penal. Devemos distinguir a função manifesta das grades de sua função real, não-manifesta: ora, se não servem para oferecer proteção efetiva, sua função é muito mais simbólica que prática, e nesse sentido elas desempenam perfeitamente seu papel ao demarcar para as classes excluídas quais os limites do seu espaço social, ao fortalecer a imagem da universidade encastelada, enclausurada, separada dos conflitos sociais que ficam "do lado de fora". Sem contar que a História demonstra que um clima de "luta contra o terror" sempre acaba por favorecer justamente quem está no poder, e sempre há um enrijecimento da hierarquia em virtude da "necessidade excepcional," por isso é muito conveniente a esses dirigentes em diversos momentos incentivarem a disseminação do medo contra determinado "inimigo" para que o "clamor" por essas atitudes pareça que vem dos próprios dirigidos.


É a universidade cada vez mais próxima do totalitarismo da liberdade vigiada de 1984, de George Orwell, através não apenas das cercas, mas também da proliferação das câmeras e do policiamento militar e civil nos campi, ao mesmo tempo em que se aproxima da "democracia entorpecente" do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley através do Universidade Nova e da negação do conhecimento crítico a quem dele precisa... Assim, garante-se a "segurança" da opressão pelos dois extremos complementares, tanto pela força quanto pelo condicionamento sócio-educacional.


Uma universidade que se pretende integrada à sociedade deve estar integrada também espacialmente, inclusive no que diz respeito às mazelas sociais do seu entorno, para buscar construir junto à sociedade as soluções desses problemas, ao invés de se ilhar aparentando uma "bolha" de paz no meio da guerra urbana. Por isso, a melhoria da questão da segurança na UFBA passa necessariamente pelo caminho inverso ao encastelamento promovido pela Reitoria, ou seja, pela integração cada vez maior às comunidades vizinhas, não através de trabalhos pontuais e assistencialistas, mas com ações que contribuam efetivamente para a emancipação dessas comunidades, trazendo-as também para dentro da universidade e direcionando o conhecimento produzido para a resolução de seus problemas. O que nos faz voltar à discussão sobre o próprio caráter da universidade, já que são duas discussões indissociáveis, mas que a reitoria tenta colocar como totalmente autônomas, como se um novo modelo de universidade não pressupusesse uma nova forma de relacionamento com a sociedade e com o espaço geográfico ao seu redor, como se a "reestruturação da arquitetura acadêmica" nada tivesse a ver com o contexto concreto do espaço em que a prática acadêmica se dá.


Assim, nós nos manifestamos totalmente contra a esse processo de encastelamento de nossa universidade, e convidamos a tod@s os que se sentem indignad@s com esse absurdo a derrubar todas as formas de muros e grades que separam nossa universidade dos trabalhadores, até mesmo porque se esconder é inútil: se não formos nós, estudantes, a fazermos isso hoje, serão os próprios trabalhadores que estão do lado de fora, amanhã.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

250 ESTUDANTES PARAM A ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DA UFBA!

[Por Fabrício Moreira - militante do DAADM e d@ COMUNA]

[Quinta-feira, 17 de Maio de 2007] Estudantes de diversos cursos da Universidade Federal da Bahia param a Escola de Administração para expressar todo o seu repúdio ao sucateamento do ensino. Ao lado, estudantes faziam a pacata eleições para o DCE, onde todos prometiam em seus panfletos combater o processo de privatização das universidades públicas.


A turma de Administração Experimental (ver neste mesmo blog o texto: ADM: Vanguarda da Privatização) foi transferida da Escola de Administração para outro prédio porque começou mais um curso privado necessitando das instalações públicas. A turma ficou furiosa, o que desencadeou um processo de mobilização.

Na última quinta-feira, 17 de Maio de 2007, os 120 estudantes da turma do projeto Administração Experimental tiveram sua primeira aula de verdade: e foi no pátio! As cadeiras foram colocadas na área externa, onde já acontecia uma panfletagem e uma estrutura mínima de som estava instalada. Era simplesmente impossível um estudante que passasse pelo local ir tranqüilo para sua sala de aula sem ver o que estava acontecendo. Entretanto, o ato não tinha intenção de evitar que as aulas acontecessem, e os estudantes de Administração que participaram foram por conta própria. É importante ressaltar que o DAADM (Diretório Acadêmico de Administração) só deu o apóio, e que a mobilização só aconteceu porque os próprios estudantes do projeto Administração Experimental (diversos cursos da UFBA) se empenharam na construção do espaço. Mas não foi surpresa quando imediatamente tiveram o apóio dos outros estudantes do curso de Administração. A revolta era grande e generalizada, só precisava do estopim...

O pátio simplesmente lotou. 250 estudantes! As escadas, os corredores: todos os espaços cheios de estudantes. Naquele momento, os estudantes discutiram a situação da Escola de Administração e da Universidade. Mostraram todo o seu repúdio à Universidade Nova. O Diretor da Escola, Reginaldo Souza, chamou o DAADM para uma conversa às portas fechadas. Mas não era dia para burocracia, pois a Escola era dos estudantes mais uma vez! "Se quer conversar conosco, que desça até o pátio!".

A professora coordenadora do projeto (Tânia Fischer), a verdadeira articuladora do processo de privatização, estava na Escola e resolveu descer pra discutir. Diante do tamanho da mobilização, deu meia volta. Mas já era tarde: prontamente foi convocada pelos estudantes para o debate.

Depois de colocar a professora na parede, os estudantes terminaram o ato passamos um abaixo-assinado onde a própria turma declarou que essa metodologia de ensino é de péssima qualidade, exigindo que não voltasse a acontecer.

Os estudantes presentes no pátio da Escola de Administração saíram de lá sabendo que a luta ainda não estava ganha, mas que começaram com um grande passo. A Escola de Administração deveria ser o exemplo de sucesso de tal modelo. Já não pode ser mais!


Enquanto isso, acontecia o processo eleitoral para o DCE...

No mesmo dia e horário, o Diretório Central dos Estudantes (DCE-UFBA) estava em processo eleitoral suplementar, devido às irregularidades ocorridas no período normal de votação. Foi extremamente simbólico o fato de que enquanto centenas de estudantes em Administração estavam mobilizados e questionando a universidade privatizada, uma boa parte do movimento estudantil (no máximo três dezenas) estava no prédio ao lado (FACED) se matando pelos últimos votos que ainda restavam. As tendências políticas brigando e discutindo uma com as outras, e várias delas criticando o DAADM por não participarmos deste processo. Os estudantes de ADM deram a resposta! Eles parados frente às urnas, enquanto uma outra juventude diziam "não" a esta velha (e a nova) universidade.

Felizmente o movimento estudantil da UFBA aos poucos está indo além dessas práticas imobilizadoras. Foi sintomático o fato de muitos diretórios acadêmicos não apoiarem nenhuma das chapas neste processo eleitoral. É ainda mais sintomático o fato de vários grupos estudantis e diretórios acadêmicos de diversas maneiras estarem buscando formas de fazer militância por fora dos quadros institucionais e partidários. Apesar de ainda ser enorme a fragmentação das lutas, novas perguntas e novas práticas já estão sendo construídas. Afinal, como disse Rosa Luxemburgo "Quem não se move, não sente os grilhões que lhe prendem".

quinta-feira, 17 de maio de 2007

ADM: Vanguarda da Privatização

[Por Fabrício Moreira – Militante do DAADM e d@ COMUNA]

A Escola de Administração da UFBA é um dos locais onde os processos de privatização, desresponsabilização e uso do espaço acadêmico como legitimação das atuais relações de poder é um dos mais avançados no Brasil. O discurso da legitimação das atuais relações sociais é tão forte, que a ênfase da faculdade é na gestão social, no desenvolvimento local e em áreas afins, afinal, eles querem nos ensinar a conviver harmoniosamente com o capitalismo. Até os estudantes que querem uma formação mais mercadológica são prejudicados, e os estudantes que querem uma formação crítica são atropelados com o ensino voltado para aprendermos a conviver com o capital e convencer os outros disso. Eles nos ensinam a ser gestores de relações sociais conflituosas para manutenção do status quo.

Só que as questões concretas da mercantilização estão ultrapassando todos os níveis cabíveis, vejamos alguns exemplos:

- Estão tirando as turmas de graduação do prédio e jogando para outras unidades, porque no lugar estão entrando cursos pagos;

- Muitos dos professores doutores SE RECUSAM a dar aula na graduação, e muitos do que o fazem é com absoluto descompromisso, com uma qualidade de ensino péssima;

- Estamos fisicamente perdendo espaço para uma grande variedade de projetos na área de consultoria, com financiamento público ou privado. Estes projetos tomam as salas, equipamentos, o tempo dos professores, etc.;

- Existem inúmeras consultorias sendo realizadas para empresas privadas e para o próprio estado;

- Querem fortalecer o Ensino à Distância e as novas tecnologias educacionais. Estão em todos os projetos nessa área: universidade corporativa, especialização à distância, mestrado à distância e agora querem começar também a graduação à distância. A fala de uma das professoras na reunião: "Daqui há cinco anos aula presencial será coisa do passado, não vai existir mais, será relíquia. Vocês vão poder contar aos seus filhos que eram do tempo em que viam o professor na sala. Se acostumem";

- A Escola faz várias pesquisas, mas os estudantes da graduação praticamente não participam delas, e os projetos de extensão da Escola são TODOS cursos pagos ou consultorias, apenas há 1 mês atrás que começou um projeto de extensão em comunidade que é gratuito, não sabemos se vai sobreviver nos próximos semestres;

- Hoje existem mais alunos de cursos pagos (especialização, mestrado e extensão), do que alunos de graduação, mestrado acadêmico e doutorado. Hoje existem mais professores atuando na Escola nestes cursos e projetos do que professores concursados;

- A qualidade de ensino é terrível: professores faltam muitas aulas, excesso de professores substitutos, provas ridículas. A monografia é uma grande farsa. Aliás, não existe defesa de monografia e muitas delas nem são lidas e avaliadas por pelo menos três professores;

- Não existe política de estágio, nem para complementar a formação com campos de prática nem para quem precisa trabalhar para se manter na faculdade. Estamos trabalhando em call-centers ou como vendedores em loja. Apenas os estudantes mais ricos, que podem estudar inglês, espanhol, fazer intercâmbio, trabalhar voluntariamente em outras consultorias pra ganhar currículo, etc., conseguem nos últimos semestres do curso virar estagiário ou trainee de grandes empresas. Ainda assim trabalham de segunda a sábado e no mínimo 8h por dia.

Enfim, são muitos problemas. Mas percebemos que toda a agenda do capital para a universidade pública está em andamento aqui: fundações de direito privado (são duas na Escola de Administração!), ensino à distância, cursos pagos, consultorias e projetos para captação de recursos no mercado, precarização do ensino, e PRINCIPALMENTE: resgatar e reforçar o papel da Universidade enquanto reprodutora das atuais relações de poder, pois ainda que forme mão-de-obra semi-qualificada seu papel central é produzir conhecimento para as classes dominantes, reproduzindo a ideologia do status quo.


O Projeto Administração Experimental e a Universidade Nova

Como uma escola que segue todos os ditames da "modernidade", é claro que a EAUFBA não ia ficar "por fora" dessa. Aliás, temos enfrentado este modelo de bacharelados interdisciplinares e inserção na agenda internacional do mercado de ensino superior há mais de 3 anos. Quando da retomada das discussões internas sobre o currículo, já havia um grupo forte de professores defendendo que nos adaptemos plenamente no modelo do Protocolo de Bolonha (base real que a Universidade Nova descaradamente copia). Já defendiam também ensino à distância, turmas de 300 alunos, etc. Os estudantes de Administração conseguiram barrar aquilo naquela época, mas os professores aprovaram o infame projeto "ADMINISTRAÇÃO EXPERIMENTAL".

Este projeto, fundamentalmente, significa testar a metodologia do bacharelado interdisciplinar nos moldes do Protocolo de Bolonha, usando toda a "moderna tecnologia educacional" já nos estudantes de graduação. Pegaram as turmas dos outros cursos que tem em seus currículos a disciplina Introdução à Administração, e juntaram em turmas de até 150 alunos (isso mesmo, 150 alunos!), dizendo que isso era "interdisciplinariedade". Detalhe: os professores disseram que a turma só não seria maior porque essa é a capacidade máxima do auditório. A primeira aula-show da semana é ministrada por um professor, e a segunda aula da semana é dividida em duas turmas de 70 a 80 alunos. Quem dá aula nessa segunda turma? Os estudantes do mestrado que acabaram de sair da graduação e ingressaram na pós!

É essa a grande "democratização do acesso" que a Universidade Nova nos apresenta: turmas com centenas de estudantes, qualidade do ensino extremamente precária, sem aumento de recursos para universidade pública, sem contratação de professores e liberando os professores que mais fazem projetos público-privados para pesquisarem temas interessantes aos grupos hegemônicos (pois conseguem financiamento farto). Afinal, você acha que estes professores dão aula? Que nada. Além de massificar a quantidade de alunos, colocam professores substitutos e monitores mestrandos (que não ganham por isso) para ministrar as aula. Precarizando ainda mais a figura do professor substituto (que deveria ser excepcional, mas já virou recorrente).

E a qualidade de ensino fica aonde mesmo? Ah, mas o projeto diz que somos interdisciplinares (150 estudantes de vários cursos assistindo uma aula-show, estilo cursinho pré-vestibular), que temos qualidade (professores substitutos e alunos de primeiro semestre do mestrado) e que há democratização do acesso (aumenta o número de vagas por as turmas terão centenas de estudantes).

Mas quando começamos a questionar os professores eles nos disseram que isso não tem nada haver com a Universidade Nova, que é tudo coisa inventada pela cabeça de aluno. Eles esqueceram que os Estudantes de Administração têm consciência de sua história de lutas. Quando os professores (não todos, mas a maioria) propuseram este projeto, os estudantes estavam presentes na reunião. Todos ouviram os professores declararem com orgulho que aquele modelo era o teste para a futura aplicação em larga escola (nacionalmente) do modelo de Bacharelado Interdisciplinar europeu, que agora é retomada na Universidade Nova. Eles, ao se auto-declararem vanguarda da privatização, esqueceram que os estudantes de ADM souberamaçdade privatizada,..

s uma vez! da reunião que aconteceu no inicio do mês de Maio às escondidas com o ministro da educação, que esteve na Escola de Administração da UFBA para conhecer o “caso de sucesso”, e que seria replicada já no próximo semestre em toda a UFBA, quiçá no Brasil.

Eles privatizam, nós nos organizamos!

Mas nós estudantes não somos apenas um elemento passivo, “produto” das aulas e do currículo. Somos seres pensantes, ativos, inseridos no mundo. Muitos lutaram e inclusive morreram na época da ditadura para que hoje tenhamos o direito de contestar o que a Universidade nos oferece. Se a intensidade da privatização daqui é forte, nós estudantes temos que ser ainda mais fortes e unidos para barrar esse processo, e no próprio processo de luta construir uma outra universidade, que atenda não apenas as nossas necessidades, mas da sociedade em que está inserida. E não é sociedade em abstrato, porque assim ela não existe, mas os grupos historicamente excluídos.

Hoje a universidade caminha para atender mais plenamente a necessidade dos grupos dominantes (os empresários de diferentes ramos). É vista inclusive por muitos estudantes como espaço necessário para se qualificar para o mercado de trabalho. Essa outra Universidade que propomos deve ser bem mais do que reproduzir os interesses dos grupos de poder. Estamos vendo historicamente os resultados da Universidade brasileira que sempre repetiu receitas “colonizadas” e elitizada, que simplesmente visavam a modernidade de forma conservadora, dizendo que deste modo seria mais benéfico para toda a população. Já se passaram 500 anos nesta lógica.

Dizemos “não”. Agora é a hora de rediscutir a Universidade a partir dos interesses e necessidades concretos da população. E não das classes dominantes mais uma vez, mas da imensa maioria da população que trabalha e com este trabalho mantêm a própria universidade, dos que sofrem com as desigualdades, da falida classe média hoje em processo de favelização. A partir de problemas concretos: desigualdade, fome, violência, falta de trabalho, emprego precarizado e sub-qualifcado, etc. Uma Universidade que se construa a partir disto, da nossa realidade concreta, daí o lema, por uma Universidade Popular.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

A Delinqüência Acadêmica*

[por Maurício Tragtenberg]


O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.

A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais.

No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de “homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o “campus” universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão de guarda” do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente os “escolhidos” socialmente.

A transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado” como único “legítimo”. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?

A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder”. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”. [1]

Em nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma “multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa “agência de poder”, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada no Pentágono.

O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou da “traição do intelectual”. Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão do Estado” em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.

Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.

Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço público” prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste “record” de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial.

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.

Ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.

A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.

A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.

A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

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* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)
[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual.
[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948

terça-feira, 8 de maio de 2007

Os Vândalos

[por João Bernardo]
http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed121/so_no_site_geral_joao.asp


A velha universidade pública ficou condenada a partir do momento em que foi convertida de instituição de elite em instituição de massas, quero dizer, quando deixou de ser um clube fechado, destinado exclusivamente a educar futuros membros das classes dominantes, e passou a ser orientada para formar força de trabalho qualificada, isto na melhor das hipóteses, porque às vezes os alunos nem sequer saem com qualificações apreciáveis. Sempre que em perguntas durante as aulas ou em debates no final de palestras a questão me é colocada, eu respondo da mesma maneira:

Que sentido tem evocar a universidade pública quando departamentos ou linhas de pesquisa ou professores individualmente recebem financiamentos, explícitos ou discretos, de grandes empresas ou de organizações não-governamentais controladas por grandes empresas, e quando esta prática se torna cada vez mais frequente? Que sentido tem evocar a universidade pública quando os serviços nos campi são privatizados? Que sentido tem evocar a universidade pública quando na esquina do corredor ou detrás da árvore surge um desses mercenários de óculos espelhados e bíceps grandiosos que costumam ornamentar os shopping centers? Hoje as universidades públicas só interessam aos professores que nelas leccionam, porque apesar de tudo detêm ainda um maior controlo sobre o seu tempo de trabalho e sobre o conteúdo deste trabalho do que deteriam nas instituições privadas. Mas como esses professores são os primeiros a acotovelarem-se uns aos outros quando se trata de obter qualquer financiamento privado, eles mesmos estão a cavar debaixo dos pés a cova em que dizem não querer cair.

Há anos atrás, quando começou no Brasil a grande vaga de privatizações, eu escrevia e dizia, apesar de isto escandalizar aquele tipo de esquerda que só se sente confortável a repetir lugares-comuns, que as empresas públicas estavam já privatizadas desde há muito tempo, porque tanto na forma como operavam como nas hierarquias internas, nos processos de trabalho e nas prioridades que definiam para as linhas de produção elas em nada se distinguiam das empresas privadas. O que então se passou foi que empresas circunscritas ao âmbito de um capitalismo nacional se transferiram para o âmbito transnacional. Não se tratou de privatização mas de transnacionalização, inevitável numa fase em que a concentração do capital atingira a globalização.

O mesmo ocorre com as universidades públicas formadoras de força de trabalho. As colaborações internacionais multiplicaram-se, as perspectivas de análise académica deixaram de se referir geograficamente a centros ou a periferias e tornaram-se globais, e os professores e respectivos orientandos são embalados e expedidos para congressos e estágios por aqui e por acolá. A universidade pública pode manter-se pública no nome, mas ela é cada vez mais privada na origem dos seus financiamentos, na determinação dos seus objectivos e, em traços gerais, no sistema do seu funcionamento.

Tragicamente, no Brasil são numerosos os professores e alunos que vêem com alegria esta evolução. Ao contrário do que sucede na Europa, no Brasil a universidade é ainda considerada como um veículo de promoção social, e a este respeito não me resta outro recurso senão o de recorrer à estafada imagem de subir uma escada que desce, porque os pais fazem os maiores sacrifícios para enviar para a universidade filhos que no final do curso acabarão por ser trabalhadores assalariados com um estatuto social equivalente, em termos relativos, àquele que os progenitores haviam tido. Num pequeno número de casos, porém, o estudante consegue progredir na hierarquia dos gestores, tanto em empresas privadas como na vida política, e inserir-se entre os capitalistas. Estas ascensões de uns poucos servem de isco para todos os demais, exactamente do mesmo modo que as pessoas jogam nas múltiplas lotarias.

O que poderia espantar é que apesar disto existam estudantes que protestem contra as variadas modalidades de privatização da universidade pública, que protestem contra a contratação de companhias de segurança privadas para actuar nos campi, contra a entrega de restaurantes universitários a empresas de fast-food ou contra a presença obsessiva dos bancos e das suas imagens nas instalações universitárias. Ainda recentemente, no dia 15 de Março, cerca de cinquenta estudantes do campus de Araraquara da Unesp participaram numa festa convocada para debater a reforma universitária. Na sequência do acto de protesto foram pintados bancos, bancos de sentar, por um lado enquanto metáfora de outros bancos, os de colocar dinheiro, por outro lado por ostentarem aquelas inscrições publicitárias que cada vez mais assinalam a penetração privada nos espaços considerados públicos, como bandeiras que os exércitos invasores hasteiam à medida que vão conquistando território. Menos amantes de alegorias, alguns estudantes decidiram atingir as instituições financeiras propriamente ditas e pintaram as caixas electrónicas. Os intuitos ficaram claros, mas a mim, pessoalmente, tudo somado parece-me pouco.

Apesar disso, esta pequena acção provocou grande celeuma, o que levanta um interessante problema de assimetrias. Empresas privadas têm o direito, legalmente confirmado, de colocar no interior dos campi as suas mensagens ideológicas e os seus símbolos, mas não é reconhecido aos estudantes o direito de colocar os deles. Trata-se de um espectáculo em que só é legítimo aplaudir e em que é proibido vaiar. «Beba isto» ou «Compre aquilo» são textos que as autoridades detentoras da sapiência académica consideram dignos de estar expostos a todos os olhos, mas « a luta muda a vida», por exemplo, uma das frases que os estudantes de Araraquara inscreveram nos assentos, se bem que me pareça mais instrutiva do que um painel publicitário, é pretexto de repressão.

A Unesp é o que é e, como sucede em instituições deste tipo, reprimir é mais fácil do que resolver as coisas de outra maneira. Assim, foi aberta uma sindicância e estão ameaçados de expulsão quatro estudantes, Juninho, do curso de Letras, e Júlia, Pedro e Thiago, do curso de Ciências Sociais.

Para me exprimir com sinceridade, receio que o facto de nos últimos tempos as autoridades da Unesp terem recorrido à repressão sempre que os alunos demonstram alguma imaginação nas formas de protesto seja revelador de uma certa insegurança quanto à qualidade do ensino. Os alunos imaginosos são um perigo, porque o que sucederá no dia funesto em que eles colocarem a imaginação em funcionamento dentro das salas de aula e começarem a levantar questões a que os professores não saibam dar resposta?

Não menos elucidativo é o facto de logo no dia seguinte ao do acto alguns estudantes terem manifestado junto à directoria a sua indignação com o protesto dos colegas. Há não muito tempo atrás, o aluno que denunciava outro tinha um nome. Mas os delatores sentiram-se prejudicados na sua ânsia ingénua de promoção social, sentiram-se agredidos ao verem pintalgadas ou inutilizadas aquelas caixas electrónicas de onde eles quase não têm dinheiro para retirar, sentiram-se insultados nas inscrições dirigidas contra aquelas empresas onde eles um dia, se tiverem sorte, irão ser trabalhadores precários. Mais instruído ainda fico ao observar que outros delatores, ou talvez os mesmos, não se satisfazendo com processos punitivos académicos, foram transmitir a sua repulsa a uma dessas celebridades fictícias da televisão, um desses personagens construídos pela revista Caras e pelas suas similares, um apresentador de programas ou comentador de plantão. Então não é lógico? Os defensores da privatização acelerada da universidade de massas encontraram voz autorizada num representante daquela que é por excelência, nos nossos dias, a cultura kitsch privada.

Estive a ver os comentários inseridos por leitores em sites da Mídia Independente a respeito do acto de protesto realizado na Unesp de Araraquara, e a acusação de vandalismo é a que mais frequentemente ocorre, até da parte de pessoas que se posicionam contra a privatização da universidade pública. Sabem qual é a origem do termo vandalismo? Todos julgam saber, claro, vem de Vândalos, um povo bárbaro que entrou no Império Romano e que partiu tudo o que encontrou à frente. Mas pensem três vezes, ou mesmo duas. Outros povos havia, daqueles que os historiadores classificaram como bárbaros, e no entanto ninguém fala da ostrogodização dos orelhões, da visigotização dos elevadores nem da burgundização dos ônibus.

Os povos ditos bárbaros, que se haviam estabelecido nos limiares do Império Romano e serviam como mercenários dos imperadores, foram convidados a adentrar as fronteiras durante as grandes lutas sociais que acabaram por ditar o fim do império. Os escravos revoltavam-se nos latifúndios, pegavam em armas, desencadeavam vastíssimas operações militares, a que as autoridades urbanas não tinham já força para responder. A aristocracia escravista convidou então os povos bárbaros a auxiliarem-na na luta contra os escravos, e foi assim que eles se fixaram no interior do império, como mercenários dos ricos. Para a velha aristocracia imperial o resultado foi duplamente trágico. Por um lado, porque não conseguiu debelar a revolta dos escravos, que conquistaram um efectivo grau de liberdade e se converteram em servos. Por outro lado, porque os mercenários bárbaros, vendo de perto a debilidade dos latifundiários, se substituíram a eles. Acabou assim o império e o escravismo, e começou o regime senhorial assente na exploração de servos.

Nem todos os povos ditos bárbaros, porém, apoiaram os latifundiários escravocratas. Na península ibérica, por exemplo, enquanto os Visigodos entraram ao serviço da aristocracia, os Suevos colocaram-se ao lado dos escravos amotinados. Mas tratava-se de um povo pouco numeroso, que acabou confinado no noroeste da península, no que são hoje a Galiza espanhola e o Minho português. Outro povo houve que se colocou ao serviço dos escravos revoltados, um povo muito mais numeroso do que os Suevos e cuja área de operações foi muitíssimo mais ampla – os Vândalos. É por isso que os Vândalos foram vândalos, porque a aristocracia latifundiária considerava como inteiramente justas e portanto como indignas de menção as atrocidades e as destruições que eram praticadas por sua ordem, mas considerava como horrendas aquelas que ela mesma sofria. Percorrendo o império de leste a oeste no que é hoje a Europa e passando depois para o norte da África, os Vândalos ajudaram os escravos a matar os latifundiários e os seus servidores, a saquear os palácios, a destruir os símbolos arquitectónicos e urbanísticos do poder imperial, a pilhar a fortuna dos ricos.

Vândalos, os quatro estudantes da Unesp de Araraquara? O Pedro, a Júlia, o Thiago e o Juninho, vândalos? Estou a escrever estas linhas e a rir-me, a imaginar o que os Vândalos, os verdadeiros, os de há muitos séculos atrás, fariam naquele campus, o que eles fariam das caixas electrónicas, das sindicâncias e dos sindicantes! E agora estou a rir-me mais ainda, a prever o que outros vândalos, não menos verdadeiros, farão daqui a algumas décadas, vindos dos subúrbios de uma sociedade toda ela privatizada, terceirizada, precarizada, aquela mesma sociedade para a qual as autoridades da Unesp dão a sua microscópica contribuição.

João Bernardo é escritor e professor. joaobernardo_jb@msn.com

segunda-feira, 7 de maio de 2007

UNIVERSIDADE NOVA: Nova Retórica, Velhos Interesses...

[Por L. - Militante da COMUNA]


O modelo da Universidade Nova, projeto de reforma acadêmica proposto no âmbito da UFBA, vem avançando a passos largos dentro da graduação, ainda que as discussões sobre o tema na esfera da sociedade civil e da própria comunidade acadêmica sejam até então escassas. Dentre as inúmeras propostas, voltadas para a precarização do ensino superior no Brasil e seu ajuste ao arquétipo neoliberal, chamamos aqui a atenção para como de fato funciona o Bacharelado Interdisciplinar (BI).

O BI é apresentado como uma alternativa de ampliação do processo de aprendizagem e aquisição de competências, que propiciaria maior autonomia ao estudante na escolha das diretrizes de sua formação. Constitui-se como um dos pontos principais trazidos pelo projeto da Universidade Nova, ora em debate. Os proponentes do modelo ressaltam dentre as virtudes do BI, o enorme potencial de ampliação das vagas oferecidas (com a possibilidade de dobrar o número atual) e a possibilidade de uma formação rápida e genérica de bacharel em determinada área do conhecimento ou a opção por uma das outras alternativas de formação oferecidas (licenciatura, cursos profissionais ou pós-graduação).

A partir de um discurso tipicamente colonizado, que sustenta a defesa dos BI’s com base na justificativa de que se trata de um modelo de sucesso praticado em universidades dos Estados Unidos e Europa, é dada pouca importância à questão crucial da perda da qualidade do ensino, já que a universidade passa a funcionar como um sistema profissionalizante voltado para o atendimento dos interesses do mercado, ofertando: mão-de-obra qualificada, barata, em abundância e sem consciência crítica ou capacidade de articulação política ou de classe.

O BI já está sendo testado na UFBA, com turmas experimentais de até 150 alunos, na Escola de Administração, em disciplina ofertada a estudantes de cursos diversos, cujas aulas são estruturadas em um revezamento feito entre docentes e monitores (estudantes de mestrado). Alguns pontos devem, no mínimo, ser trazidos à luz, pois têm sido abordados como questões menores ou secundárias, quando na verdade deveriam estar no centro do debate em torno da Universidade Nova:

· a perda da qualidade das aulas, que sendo ministradas para grupos de até 150 alunos, estão sujeitas a limitações metodológicas e pedagógicas óbvias, num claro movimento de troca da qualidade pela quantidade;

· a massificação da relação entre professores e estudantes, já que os primeiros não têm como oferecer atenção personalizada a cada um dos 150 integrantes de cada turma, o que afasta docentes e discentes;

· o sucateamento dos quadros intelectuais das instituições de ensino superior que passam a substituir professores concursados por estudantes de mestrado (“os monitores”), mais uma vez seguindo o propalado receituário neoliberal, num duplo movimento - o primeiro de precarização das relações de trabalho, com uso de mão-de-obra barata e qualificada para produzir mais mão-de-obra barata e qualificada; e o segundo de desvalorização e exclusão da figura do “intelectual orgânico” dos quadros funcionais da academia;

· a falta de transparência na implantação do modelo experimental do BI, posto que a maioria dos estudantes ignora o fato de que já estão sendo testadas disciplinas na graduação dentro dos parâmetros propostos pela Universidade Nova (inclusive muitos dos discentes matriculados nas turmas experimentais).

A lista é longa, contudo colocamos alguns dos pontos mais pertinentes para suscitar uma reflexão e fomentar o debate inicial em torno de uma questão que afeta a todos nós. A necessidade de uma “outra” universidade é inquestionável. Entretanto, esta “outra” universidade não deve ser imposta à comunidade acadêmica por grupos voltados ao atendimento dos interesses do capital, nem tão pouco pode ser uma cópia piorada de modelos externos que reproduzem uma prática tacanha de servilismo cultural diante do que vem dos países ditos desenvolvidos.

Se por um lado, a proposta é intitulada Universidade Nova, por outro não há nada de original nos interesses que a retórica escamoteia. O que se vê neste projeto se baseia em uma problemática abordada pela socióloga e cientista política Elisa Reis[1] em suas pesquisas, nas quais a educação é apontada pelas elites[2] como o caminho mais adequado para dotar os “desprivilegiados” de recursos. Nos diferentes setores da elite um peso muito grande é atribuído aos investimentos em educação e na “modernização” do ensino no Brasil, que deve se voltar para o mercado e nesse sentido aparece como a grande panacéia para dirimir as desigualdades sociais.

Trata-se de uma tentativa de instrumentalização da educação, que já obteve êxito preocupante nos níveis fundamental e médio e agora é direcionada para o ensino superior. A educação deixa de ser um direito básico para permitir o acesso universal ao conhecimento, a emancipação do indivíduo e sua formação enquanto cidadão, e se torna um recurso a ser explorado pelo poder público com dois objetivos principais: o primeiro de dotar os setores mais pobres da população de condições para competir por um lugar melhor na estrutura social sem envolver uma ativa redistribuição de renda e riqueza; e o segundo de ofertar ao capital mão-de-obra apta a atuar no mercado.

Uma das pesquisas da autora citada conclui que esta nova abordagem da educação expressa a crença amplamente difundida segundo a qual a escola cria oportunidades de mobilidade social. No caso brasileiro ela parece também refletir o otimismo da era desenvolvimentista, quando se apostava na criação de novas posições estruturais, novas ocupações sociais que viriam a ser preenchidas pelas novas gerações, através de novos modelos a serem adotados no âmbito das instituições de ensino mantidas pelo Estado (como a Universidade Nova). As classes desfavorecidas poderiam, assim, ascender socialmente sem, contudo, provocar a mobilidade descendente de outros setores. Em suma, as elites apostam na possibilidade de melhoria para os pobres sem custos diretos para os não-pobres através da educação, que passa então a ser aviltada por reformas irresponsáveis.

Uma “outra” universidade deve ser construída democraticamente, a partir de um debate transparente e abrangente, com a participação dos estudantes, professores e da sociedade, e deve estar pautado na inclusão com qualidade de ensino e não em um modelo de sucateamento que busca promover um reajuste favorável aos interesses amplos do capital.


[1] REIS, Elisa P. Percepções da elite sobre pobreza e desigualdade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, fev. 2000, vol.15, no.42, p.143-152.

[2] No estudo mencionado, são identificados “amplos setores da elite brasileira: políticos, burocratas, líderes empresariais, líderes sindicais, as elites militares, religiosas, intelectuais e outras”. Conceitualmente, o termo elite, de modo geral, pode ser considerado como um grupo dominante na sociedade. Especificamente, o conceito possui diversas definições. Para alguns autores, como Vilfredo Pareto, elite significa uma alternativa teórica ao conceito de classe dominante de Karl Marx. Pode também referir-se a um grupo situado em uma posição hierárquica superior numa dada organização e com o poder de decisão política e econômica, como definido por Wright Mills. Segundo definição de Robert Dahl, elite seria o grupo minoritário que exerce uma dominação política sobre a maioria dentro de um sistema de poder democrático.