UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


domingo, 17 de junho de 2007

ADMIRÁVEL UNIVERSIDADE NOVA

[Henrique Souza – Militante do SAJU e d@ Comuna]

Esse pequeno conto se passa numa universidade num lugar distante de um futuro de data imprecisa, mas de certa forma também se passa exatamente aqui e agora. Alertamos que não se trata de exercício de previsão, mas, antes disso, uma esperança de que não se trate de uma previsão. A cena ocorre mais especificamente na sala de aula do futuro, um auditório, cujos assentos, por uma questão de racionamento de espaço, estão empilhados uns em cima dos outros em forma de um estoque de sardinhas enlatadas. Trata-se de uma aula de História das Idéias Ultrapassadas, em vias de ser banida porque na universidade do futuro não se aprecia o estudo da História. A rigor, como a universidade do futuro é internacional e, portanto, padronizada, todas as aulas são ministradas em inglês, o que nos demandou um grande esforço de tradução, já que nem todos os termos do inglês do futuro têm correspondentes no português atual. Aliás, o português é umas das milhares de línguas e dialetos que entraram em extinção. Na sala, centenas de jovens estão em silêncio e imóveis, olhando fixamente para a imagem do que outrora costumava ser conhecido como professor:

- Bem, continuando, nesse holograma podemos ver uma peça que data do século XIX, conhecida atualmente como “Universidade Velha”, um modelo obsoleto de ensino superior caracterizado pelos altos custos, baixa produtividade e ineficiência na formatação dos depositários fabricados, cujos últimos resquícios datam do início do século XXI, ou, para ser mais preciso, usando o sistema de contagem em vigor, do ano 150 d.F. (depois de Ford). Na verdade, naquela época os depositários como vocês eram chamados de “estudantes”, mas a denominação padrão foi modificada desde que a Universidade percebeu a importância de oficializar o modelo de Educação Bancária, conceito que foi muito bem desenvolvido por um grande teórico chamado Paulo Freire, que estudou a Educação Bancária com o objetivo de destruí-la, mas o sistema, obviamente, hoje se aproveita de seus estudos para desenvolvê-la cada vez mais. Como eu ia dizendo, há muito tempo que esse modelo de “Universidade Velha” foi substituído pela “Universidade Nova”, que é a que vocês têm o privilégio de freqüentar agora, uma universidade sintonizada com a era da sociedade do conhecimento e com a internacionalização proveniente do processo de globalização.

Durante a explicação, no entanto, uma garota baixinha chamada Mafalda se inquietava, lá no fundo, achando que tinha alguma coisa errada naquela história toda. Sem saber como agir, teve um impulso e tomou uma atitude impensada: fez uma pergunta.

- Mas, senhor depositante, a imagem dessa “universidade velha” apresentada no holograma é praticamente igual à “Universidade Nova” que nós estamos agora, existe alguma diferença entre as duas?

- Minha cara... Herr, deixe-me ver... Minha cara MX-7892, em primeiro lugar, você bem sabe que numa turma com 500 depositários como a que estamos não dá para todos ficarem tirando suas dúvidas pessoais, portanto questionamentos como o seu são severamente desestimuladas por representarem um gesto de egoísmo e prejudicarem o resto da turma. Sua nota na disciplina acaba de ficar 10 dólares mais cara! A propósito, ao fim da aula eu quero que você vá ao setor médico para examinar se você tem tomado sua dose obrigatória de tranqüilizante. Mas para não ser chamado de anti-didático, vou responder à sua questão. Em termos de estrutura física a “Universidade Nova” é realmente quase igual à “Universidade Velha”, exceto pelo fato de que atualmente a Bolha Universitária, antigamente chamada de Campus, é muito mais segura: os muros são muito mais altos, as cercas foram eletrificadas, os vidros são blindados e, claro, há câmeras por toda a parte para monitorar a segurança de vocês. Mas na verdade não é só na aparência física que existe essa semelhança: tanto a Universidade Velha quanto a Universidade Nova têm exatamente o mesmo objetivo, transformar a perigosa energia potencialmente destrutiva, criativa e revolucionária da juventude em força de trabalho para garantir a estabilidade social. Afinal, qual o princípio fundamental da sociedade civilizada?

- NÃO HÁ CIVILIZAÇÃO SEM ESTABILIDADE SOCIAL. – Repete três vezes a turma, em coro.

- Muito bem! Em última instância, a finalidade da universidade e da educação como um todo é condicionar vocês, e como disse o visionário Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo, o fim de todo o condicionamento é fazer as pessoas apreciarem o destino social a que não podem escapar. Por isso, em essência a universidade teve que se renovar para manter tudo igual. Aliás isso é a regra no capitalismo, as empresas têm sempre que lançar novos produtos no mercado, ou os mesmos produtos com uma nova roupagem, para se manterem competitivas. Nada mais lógico que as universidades seguirem o mesmo modelo. Como disse o Grande Ford: “Viva o Novo”!

- Graças a Ford! – os depositários repetem, fazendo o sinal do T.

- Então, podemos analisar a inovação trazida pela “Universidade Nova” sob dois aspectos. Por um lado, foi um grande golpe de publicidade, não apenas pelo impacto da marca nova, mas principalmente para aliviar as pressões sociais que, àquela altura, exigiam que a universidade fosse utilizada como instrumento de inclusão social e que as estruturas acadêmicas fossem reformuladas para esse fim. Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho também exigia uma nova formação acadêmica, pois a flexibilização do trabalho exigia um trabalhador mais flexível, ou seja, um grande exército de reserva de mão de obra barata com uma formação mais generalista, para assim reduzir ao mesmo tempo a quantidade de postos de trabalho e o poder de barganha do trabalhador e, dessa forma, os salários. Assim, surgiu o chamado ciclo básico, graças ao qual vocês têm a honra de assistir a essa aula nesse auditório, ao mesmo tempo em que estamos sendo transmitidos ao vivo para outras 80 turmas espalhadas pelo país. Isso sim é um exemplo de produtividade! Ao mesmo tempo, deveria haver uma formação de excelência restrita representada pelos Mestrados e Doutorados para a formação da elite dominante. E assim surgiu a “Universidade Nova”! Não era democratização do acesso o que os rebeldes da época pediam? Pois nós democratizamos não só o acesso, democratizamos a subserviência, o democratizamos o pensamento único, democratizamos o desemprego, que, como vocês sabem, são fatores essenciais para o acúmulo de capital e para a estabilidade social. Não gritavam tanto contra o autoritarismo? Pois nós lhes demos liberdade, mas a liberdade pacífica de colaborarem com o sistema!

- Mas, senhor depositário, na época esses estudantes rebeldes de que o senhor fala não se opuseram também à Universidade Nova? – Mafalda não conseguiu se controlar, já se arrependendo de não ter tomado a sua dose obrigatória de entorpecente.

- MX-7892, esses seus questionamentos inquietam a turma, eles despertam a praga da curiosidade! Acabo de acrescentar mais 100 dólares de débito à sua nota! Mas mais uma vez, vou ser generoso e responder a sua pergunta. Os “estudantes rebeldes” daquela época bem podiam ter derrubado o Universidade Nova, sim, podiam até ter ido além, podiam ter construído uma heresia como uma universidade verdadeiramente popular se tivessem lutado, mas felizmente, nós os paralisamos com a mais eficiente das armas: oferecemo-lhes o poder. Cargos, financiamento, representatividade nos conselhos deliberativos, enfim, bastou seduzi-los com a disputa institucional que eles não faziam nada mais que disputar eleições e brigar por cargos. Não é a toa que esses mesmos estudantes rebeldes hoje formam a elite política e econômica que nos permitem desfrutar da Universidade Nova...

Mafalda já não conseguia mais prestar atenção. Ainda quis dizer alguma coisa, mas se segurou. Não sabia de onde tiraria mais dinheiro para ser aprovada, já que as multas extrapolavam em muito o valor da sua bolsa-permanecer. Sentia dentro do peito uma sensação estranha, algo que não sabia explicar de tão absurdo que era, como uma vontade de questionar, de gritar, de resistir, de protestar... Mas era como se fosse uma vontade fora de época, o tempo que havia para aquilo ser feito era o tempo mítico dos “estudantes rebeldes” ao qual o senhor depositário se referia... Mas aquele tempo passou, aquela geração tinha se calado, e Mafalda também se calou. Discretamente, escreveu em seu caderno: “O novo já nasce velho...”

3 comentários:

Universidade Popular disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Bombou muito!!!!!
Parabéns

Anônimo disse...

Instigante!! não podemos deixar que esse tempo passe sem que façamos nada. A HORA É AGORA!