UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


terça-feira, 8 de maio de 2007

Os Vândalos

[por João Bernardo]
http://carosamigos.terra.com.br/nova/ed121/so_no_site_geral_joao.asp


A velha universidade pública ficou condenada a partir do momento em que foi convertida de instituição de elite em instituição de massas, quero dizer, quando deixou de ser um clube fechado, destinado exclusivamente a educar futuros membros das classes dominantes, e passou a ser orientada para formar força de trabalho qualificada, isto na melhor das hipóteses, porque às vezes os alunos nem sequer saem com qualificações apreciáveis. Sempre que em perguntas durante as aulas ou em debates no final de palestras a questão me é colocada, eu respondo da mesma maneira:

Que sentido tem evocar a universidade pública quando departamentos ou linhas de pesquisa ou professores individualmente recebem financiamentos, explícitos ou discretos, de grandes empresas ou de organizações não-governamentais controladas por grandes empresas, e quando esta prática se torna cada vez mais frequente? Que sentido tem evocar a universidade pública quando os serviços nos campi são privatizados? Que sentido tem evocar a universidade pública quando na esquina do corredor ou detrás da árvore surge um desses mercenários de óculos espelhados e bíceps grandiosos que costumam ornamentar os shopping centers? Hoje as universidades públicas só interessam aos professores que nelas leccionam, porque apesar de tudo detêm ainda um maior controlo sobre o seu tempo de trabalho e sobre o conteúdo deste trabalho do que deteriam nas instituições privadas. Mas como esses professores são os primeiros a acotovelarem-se uns aos outros quando se trata de obter qualquer financiamento privado, eles mesmos estão a cavar debaixo dos pés a cova em que dizem não querer cair.

Há anos atrás, quando começou no Brasil a grande vaga de privatizações, eu escrevia e dizia, apesar de isto escandalizar aquele tipo de esquerda que só se sente confortável a repetir lugares-comuns, que as empresas públicas estavam já privatizadas desde há muito tempo, porque tanto na forma como operavam como nas hierarquias internas, nos processos de trabalho e nas prioridades que definiam para as linhas de produção elas em nada se distinguiam das empresas privadas. O que então se passou foi que empresas circunscritas ao âmbito de um capitalismo nacional se transferiram para o âmbito transnacional. Não se tratou de privatização mas de transnacionalização, inevitável numa fase em que a concentração do capital atingira a globalização.

O mesmo ocorre com as universidades públicas formadoras de força de trabalho. As colaborações internacionais multiplicaram-se, as perspectivas de análise académica deixaram de se referir geograficamente a centros ou a periferias e tornaram-se globais, e os professores e respectivos orientandos são embalados e expedidos para congressos e estágios por aqui e por acolá. A universidade pública pode manter-se pública no nome, mas ela é cada vez mais privada na origem dos seus financiamentos, na determinação dos seus objectivos e, em traços gerais, no sistema do seu funcionamento.

Tragicamente, no Brasil são numerosos os professores e alunos que vêem com alegria esta evolução. Ao contrário do que sucede na Europa, no Brasil a universidade é ainda considerada como um veículo de promoção social, e a este respeito não me resta outro recurso senão o de recorrer à estafada imagem de subir uma escada que desce, porque os pais fazem os maiores sacrifícios para enviar para a universidade filhos que no final do curso acabarão por ser trabalhadores assalariados com um estatuto social equivalente, em termos relativos, àquele que os progenitores haviam tido. Num pequeno número de casos, porém, o estudante consegue progredir na hierarquia dos gestores, tanto em empresas privadas como na vida política, e inserir-se entre os capitalistas. Estas ascensões de uns poucos servem de isco para todos os demais, exactamente do mesmo modo que as pessoas jogam nas múltiplas lotarias.

O que poderia espantar é que apesar disto existam estudantes que protestem contra as variadas modalidades de privatização da universidade pública, que protestem contra a contratação de companhias de segurança privadas para actuar nos campi, contra a entrega de restaurantes universitários a empresas de fast-food ou contra a presença obsessiva dos bancos e das suas imagens nas instalações universitárias. Ainda recentemente, no dia 15 de Março, cerca de cinquenta estudantes do campus de Araraquara da Unesp participaram numa festa convocada para debater a reforma universitária. Na sequência do acto de protesto foram pintados bancos, bancos de sentar, por um lado enquanto metáfora de outros bancos, os de colocar dinheiro, por outro lado por ostentarem aquelas inscrições publicitárias que cada vez mais assinalam a penetração privada nos espaços considerados públicos, como bandeiras que os exércitos invasores hasteiam à medida que vão conquistando território. Menos amantes de alegorias, alguns estudantes decidiram atingir as instituições financeiras propriamente ditas e pintaram as caixas electrónicas. Os intuitos ficaram claros, mas a mim, pessoalmente, tudo somado parece-me pouco.

Apesar disso, esta pequena acção provocou grande celeuma, o que levanta um interessante problema de assimetrias. Empresas privadas têm o direito, legalmente confirmado, de colocar no interior dos campi as suas mensagens ideológicas e os seus símbolos, mas não é reconhecido aos estudantes o direito de colocar os deles. Trata-se de um espectáculo em que só é legítimo aplaudir e em que é proibido vaiar. «Beba isto» ou «Compre aquilo» são textos que as autoridades detentoras da sapiência académica consideram dignos de estar expostos a todos os olhos, mas « a luta muda a vida», por exemplo, uma das frases que os estudantes de Araraquara inscreveram nos assentos, se bem que me pareça mais instrutiva do que um painel publicitário, é pretexto de repressão.

A Unesp é o que é e, como sucede em instituições deste tipo, reprimir é mais fácil do que resolver as coisas de outra maneira. Assim, foi aberta uma sindicância e estão ameaçados de expulsão quatro estudantes, Juninho, do curso de Letras, e Júlia, Pedro e Thiago, do curso de Ciências Sociais.

Para me exprimir com sinceridade, receio que o facto de nos últimos tempos as autoridades da Unesp terem recorrido à repressão sempre que os alunos demonstram alguma imaginação nas formas de protesto seja revelador de uma certa insegurança quanto à qualidade do ensino. Os alunos imaginosos são um perigo, porque o que sucederá no dia funesto em que eles colocarem a imaginação em funcionamento dentro das salas de aula e começarem a levantar questões a que os professores não saibam dar resposta?

Não menos elucidativo é o facto de logo no dia seguinte ao do acto alguns estudantes terem manifestado junto à directoria a sua indignação com o protesto dos colegas. Há não muito tempo atrás, o aluno que denunciava outro tinha um nome. Mas os delatores sentiram-se prejudicados na sua ânsia ingénua de promoção social, sentiram-se agredidos ao verem pintalgadas ou inutilizadas aquelas caixas electrónicas de onde eles quase não têm dinheiro para retirar, sentiram-se insultados nas inscrições dirigidas contra aquelas empresas onde eles um dia, se tiverem sorte, irão ser trabalhadores precários. Mais instruído ainda fico ao observar que outros delatores, ou talvez os mesmos, não se satisfazendo com processos punitivos académicos, foram transmitir a sua repulsa a uma dessas celebridades fictícias da televisão, um desses personagens construídos pela revista Caras e pelas suas similares, um apresentador de programas ou comentador de plantão. Então não é lógico? Os defensores da privatização acelerada da universidade de massas encontraram voz autorizada num representante daquela que é por excelência, nos nossos dias, a cultura kitsch privada.

Estive a ver os comentários inseridos por leitores em sites da Mídia Independente a respeito do acto de protesto realizado na Unesp de Araraquara, e a acusação de vandalismo é a que mais frequentemente ocorre, até da parte de pessoas que se posicionam contra a privatização da universidade pública. Sabem qual é a origem do termo vandalismo? Todos julgam saber, claro, vem de Vândalos, um povo bárbaro que entrou no Império Romano e que partiu tudo o que encontrou à frente. Mas pensem três vezes, ou mesmo duas. Outros povos havia, daqueles que os historiadores classificaram como bárbaros, e no entanto ninguém fala da ostrogodização dos orelhões, da visigotização dos elevadores nem da burgundização dos ônibus.

Os povos ditos bárbaros, que se haviam estabelecido nos limiares do Império Romano e serviam como mercenários dos imperadores, foram convidados a adentrar as fronteiras durante as grandes lutas sociais que acabaram por ditar o fim do império. Os escravos revoltavam-se nos latifúndios, pegavam em armas, desencadeavam vastíssimas operações militares, a que as autoridades urbanas não tinham já força para responder. A aristocracia escravista convidou então os povos bárbaros a auxiliarem-na na luta contra os escravos, e foi assim que eles se fixaram no interior do império, como mercenários dos ricos. Para a velha aristocracia imperial o resultado foi duplamente trágico. Por um lado, porque não conseguiu debelar a revolta dos escravos, que conquistaram um efectivo grau de liberdade e se converteram em servos. Por outro lado, porque os mercenários bárbaros, vendo de perto a debilidade dos latifundiários, se substituíram a eles. Acabou assim o império e o escravismo, e começou o regime senhorial assente na exploração de servos.

Nem todos os povos ditos bárbaros, porém, apoiaram os latifundiários escravocratas. Na península ibérica, por exemplo, enquanto os Visigodos entraram ao serviço da aristocracia, os Suevos colocaram-se ao lado dos escravos amotinados. Mas tratava-se de um povo pouco numeroso, que acabou confinado no noroeste da península, no que são hoje a Galiza espanhola e o Minho português. Outro povo houve que se colocou ao serviço dos escravos revoltados, um povo muito mais numeroso do que os Suevos e cuja área de operações foi muitíssimo mais ampla – os Vândalos. É por isso que os Vândalos foram vândalos, porque a aristocracia latifundiária considerava como inteiramente justas e portanto como indignas de menção as atrocidades e as destruições que eram praticadas por sua ordem, mas considerava como horrendas aquelas que ela mesma sofria. Percorrendo o império de leste a oeste no que é hoje a Europa e passando depois para o norte da África, os Vândalos ajudaram os escravos a matar os latifundiários e os seus servidores, a saquear os palácios, a destruir os símbolos arquitectónicos e urbanísticos do poder imperial, a pilhar a fortuna dos ricos.

Vândalos, os quatro estudantes da Unesp de Araraquara? O Pedro, a Júlia, o Thiago e o Juninho, vândalos? Estou a escrever estas linhas e a rir-me, a imaginar o que os Vândalos, os verdadeiros, os de há muitos séculos atrás, fariam naquele campus, o que eles fariam das caixas electrónicas, das sindicâncias e dos sindicantes! E agora estou a rir-me mais ainda, a prever o que outros vândalos, não menos verdadeiros, farão daqui a algumas décadas, vindos dos subúrbios de uma sociedade toda ela privatizada, terceirizada, precarizada, aquela mesma sociedade para a qual as autoridades da Unesp dão a sua microscópica contribuição.

João Bernardo é escritor e professor. joaobernardo_jb@msn.com

segunda-feira, 7 de maio de 2007

UNIVERSIDADE NOVA: Nova Retórica, Velhos Interesses...

[Por L. - Militante da COMUNA]


O modelo da Universidade Nova, projeto de reforma acadêmica proposto no âmbito da UFBA, vem avançando a passos largos dentro da graduação, ainda que as discussões sobre o tema na esfera da sociedade civil e da própria comunidade acadêmica sejam até então escassas. Dentre as inúmeras propostas, voltadas para a precarização do ensino superior no Brasil e seu ajuste ao arquétipo neoliberal, chamamos aqui a atenção para como de fato funciona o Bacharelado Interdisciplinar (BI).

O BI é apresentado como uma alternativa de ampliação do processo de aprendizagem e aquisição de competências, que propiciaria maior autonomia ao estudante na escolha das diretrizes de sua formação. Constitui-se como um dos pontos principais trazidos pelo projeto da Universidade Nova, ora em debate. Os proponentes do modelo ressaltam dentre as virtudes do BI, o enorme potencial de ampliação das vagas oferecidas (com a possibilidade de dobrar o número atual) e a possibilidade de uma formação rápida e genérica de bacharel em determinada área do conhecimento ou a opção por uma das outras alternativas de formação oferecidas (licenciatura, cursos profissionais ou pós-graduação).

A partir de um discurso tipicamente colonizado, que sustenta a defesa dos BI’s com base na justificativa de que se trata de um modelo de sucesso praticado em universidades dos Estados Unidos e Europa, é dada pouca importância à questão crucial da perda da qualidade do ensino, já que a universidade passa a funcionar como um sistema profissionalizante voltado para o atendimento dos interesses do mercado, ofertando: mão-de-obra qualificada, barata, em abundância e sem consciência crítica ou capacidade de articulação política ou de classe.

O BI já está sendo testado na UFBA, com turmas experimentais de até 150 alunos, na Escola de Administração, em disciplina ofertada a estudantes de cursos diversos, cujas aulas são estruturadas em um revezamento feito entre docentes e monitores (estudantes de mestrado). Alguns pontos devem, no mínimo, ser trazidos à luz, pois têm sido abordados como questões menores ou secundárias, quando na verdade deveriam estar no centro do debate em torno da Universidade Nova:

· a perda da qualidade das aulas, que sendo ministradas para grupos de até 150 alunos, estão sujeitas a limitações metodológicas e pedagógicas óbvias, num claro movimento de troca da qualidade pela quantidade;

· a massificação da relação entre professores e estudantes, já que os primeiros não têm como oferecer atenção personalizada a cada um dos 150 integrantes de cada turma, o que afasta docentes e discentes;

· o sucateamento dos quadros intelectuais das instituições de ensino superior que passam a substituir professores concursados por estudantes de mestrado (“os monitores”), mais uma vez seguindo o propalado receituário neoliberal, num duplo movimento - o primeiro de precarização das relações de trabalho, com uso de mão-de-obra barata e qualificada para produzir mais mão-de-obra barata e qualificada; e o segundo de desvalorização e exclusão da figura do “intelectual orgânico” dos quadros funcionais da academia;

· a falta de transparência na implantação do modelo experimental do BI, posto que a maioria dos estudantes ignora o fato de que já estão sendo testadas disciplinas na graduação dentro dos parâmetros propostos pela Universidade Nova (inclusive muitos dos discentes matriculados nas turmas experimentais).

A lista é longa, contudo colocamos alguns dos pontos mais pertinentes para suscitar uma reflexão e fomentar o debate inicial em torno de uma questão que afeta a todos nós. A necessidade de uma “outra” universidade é inquestionável. Entretanto, esta “outra” universidade não deve ser imposta à comunidade acadêmica por grupos voltados ao atendimento dos interesses do capital, nem tão pouco pode ser uma cópia piorada de modelos externos que reproduzem uma prática tacanha de servilismo cultural diante do que vem dos países ditos desenvolvidos.

Se por um lado, a proposta é intitulada Universidade Nova, por outro não há nada de original nos interesses que a retórica escamoteia. O que se vê neste projeto se baseia em uma problemática abordada pela socióloga e cientista política Elisa Reis[1] em suas pesquisas, nas quais a educação é apontada pelas elites[2] como o caminho mais adequado para dotar os “desprivilegiados” de recursos. Nos diferentes setores da elite um peso muito grande é atribuído aos investimentos em educação e na “modernização” do ensino no Brasil, que deve se voltar para o mercado e nesse sentido aparece como a grande panacéia para dirimir as desigualdades sociais.

Trata-se de uma tentativa de instrumentalização da educação, que já obteve êxito preocupante nos níveis fundamental e médio e agora é direcionada para o ensino superior. A educação deixa de ser um direito básico para permitir o acesso universal ao conhecimento, a emancipação do indivíduo e sua formação enquanto cidadão, e se torna um recurso a ser explorado pelo poder público com dois objetivos principais: o primeiro de dotar os setores mais pobres da população de condições para competir por um lugar melhor na estrutura social sem envolver uma ativa redistribuição de renda e riqueza; e o segundo de ofertar ao capital mão-de-obra apta a atuar no mercado.

Uma das pesquisas da autora citada conclui que esta nova abordagem da educação expressa a crença amplamente difundida segundo a qual a escola cria oportunidades de mobilidade social. No caso brasileiro ela parece também refletir o otimismo da era desenvolvimentista, quando se apostava na criação de novas posições estruturais, novas ocupações sociais que viriam a ser preenchidas pelas novas gerações, através de novos modelos a serem adotados no âmbito das instituições de ensino mantidas pelo Estado (como a Universidade Nova). As classes desfavorecidas poderiam, assim, ascender socialmente sem, contudo, provocar a mobilidade descendente de outros setores. Em suma, as elites apostam na possibilidade de melhoria para os pobres sem custos diretos para os não-pobres através da educação, que passa então a ser aviltada por reformas irresponsáveis.

Uma “outra” universidade deve ser construída democraticamente, a partir de um debate transparente e abrangente, com a participação dos estudantes, professores e da sociedade, e deve estar pautado na inclusão com qualidade de ensino e não em um modelo de sucateamento que busca promover um reajuste favorável aos interesses amplos do capital.


[1] REIS, Elisa P. Percepções da elite sobre pobreza e desigualdade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, fev. 2000, vol.15, no.42, p.143-152.

[2] No estudo mencionado, são identificados “amplos setores da elite brasileira: políticos, burocratas, líderes empresariais, líderes sindicais, as elites militares, religiosas, intelectuais e outras”. Conceitualmente, o termo elite, de modo geral, pode ser considerado como um grupo dominante na sociedade. Especificamente, o conceito possui diversas definições. Para alguns autores, como Vilfredo Pareto, elite significa uma alternativa teórica ao conceito de classe dominante de Karl Marx. Pode também referir-se a um grupo situado em uma posição hierárquica superior numa dada organização e com o poder de decisão política e econômica, como definido por Wright Mills. Segundo definição de Robert Dahl, elite seria o grupo minoritário que exerce uma dominação política sobre a maioria dentro de um sistema de poder democrático.

Universidade Nova: quem ganha com este projeto?

[Daniel Caribé - Militante da COMUNA]

1. Os mercadores do ensino: os donos das universidades privadas, que em sua grande maioria não tem nenhum compromisso com a construção do saber – seja de que tipo for –, expandiram seus negócios de forma muito rápida nos últimos anos, contanto aí incentivos oferecidos pelo governo FHC e que foram intensificados no governo Lula. Mesmo com todos esses programas, há neste setor uma taxa de evasão muito elevada, assim como o número de vagas ociosas. Um grande problema para quem trata a educação enquanto mercadoria e que, portanto, tem necessidade que os estudantes efetivem os pagamentos das mensalidades para continuar lucrando! Já é sabido que os governos neoliberais dos últimos anos transferiram os escassos recursos da educação superior para estas instituições através de inúmeros programas. Agora a Universidade Nova se apresenta como mais uma solução para estes empreendimentos. Com o provável gargalo que será a passagem dos BI's (Bacharelados Interdisciplinares) para os cursos qualificados e realmente significantes (mesmo para quem quer ser "apenas" mão-de-obra qualificada), destinados para uma elite de "excelência", uma grande quantidade de estudantes terá que buscar o complemento dos seus estudos em uma das universidades privadas. Como boa parte da população não terá recursos para adentrar nestas instituições, uma quantidade ainda maior de programas de transferência de recursos terá que ser criada, enquanto para o outro lado – as universidades estatais – não se prevê nenhuma verba a mais para a educação nos próximos 10 anos. A Universidade Nova também prevê cursos à distância (de forma virtual) e uma multiplicação de estudantes por sala de aula, o que diminui consideravelmente os custos na medida em que precariza ainda mais a educação.

2. A Burocracia Acadêmica: um dos argumentos a favor da Universidade Nova é a possibilidade de acabar com os "feudos" dentro das instituições estatais de ensino. Pode-se até mudar o nome de feudo para burgos (ou para bancos), mas uma elite ainda continuará a dominar as universidades, desta vez muito mais integrada à dinâmica do capital. O novo projeto do MEC (cujo reitor da UFBA, Naomar, é um mero porta-voz), foca nossas atenções propositadamente nos ciclos básicos, o que eles chamam de BI's (Bacharelados Interdisciplinares). Fazem isto para que o debate não gire em torno das pós-graduações e da pesquisa. Esse projeto prevê uma total desarticulação entre o primeiro momento e os posteriores, criando na verdade dois modelos distintos de universidade. O primeiro modelo, como já tentamos explicar, serve para a produção de mão-de-obra flexível, para atender a demanda imediatas do capital. O segundo modelo também atende à demanda do capital, só que produzindo conhecimento subordinado. Esta segunda universidade, sem nenhum vínculo com a "senzala" da graduação (ou com o "chão-de-fábrica" caso queiramos ser mais modernos na linguagem) estará institucionalmente liberada para captar recursos no mercado e terá a sua disposição uma quantidade de professores com o tempo livre suficiente para produzir este saber privatizado. Nitidamente, serão professores de "excelência", com maior qualificação, que dominarão esta segunda universidade. Da mesma forma que se criarão duas universidades e dois tipos de estudantes, teremos também dois tipos de professores: um para a senzala, outro para a casa-grande, como já acontece nas unidades mais privatizadas das grandes universidades brasileiras – sim, queremos expor com o uso desta terminologia todo caráter racista deste projeto, assim como já o é na Europa e nos Estados Unidos.

3. O Governo Lula: o governo Lula se livra de uma grande confusão. A Reforma Universitária provocou a universidade velha, e os movimentos em defesa da educação depois de um longo período de desorganização conseguiram sem unificar. A Reforma Universitária é apontada como um projeto autoritário, imposto de cima para baixo, sem ouvir as históricas bandeiras dos estudantes, dos trabalhadores em geral e dos sindicalistas do setor. A estratégia do governo de empurrar para os reitores a iniciativa reformulação da universidade brasileira não poderia ter sido uma saída melhor! Agora se usa o argumento de que a universidade será reestruturada a partir das suas próprias demandas, respeitando sua autonomia, já que surge da cabeça de reitores democraticamente eleitos. Ainda mais: o projeto usa de forma completamente invertida as demandas dos movimentos sociais: fim do vestibular, ampliação de vagas e autonomia universitária. O Governo Lula sai por cima desta vez, porque arranjou quem fizesse por ele o jogo sujo, com uma brilhante fórmula de transformar o que era autoritarismo em democracia, sem mudar a essência da proposta.

'Fast delivery' diploma: a feição da contra-reforma da educação superior

[por Roberto Leher]
http://www.sintufrj.org.br/gtEducacaoDebateAberto.asp


Diante do projeto "Universidade Nova", apresentado pelo Reitor da UFBA, a comunidade universitária, os movimentos sociais e setores sociais não podem se furtar da luta para impedir que a velha agenda destrua as universidades públicas.

O intento de anunciar um marco temporal com o adjetivo "novo" é uma prática usual na política, utilizada, em geral, para ocultar vínculos indesejáveis com uma situação anterior: Estado Novo, Nova República... Os exemplos são inúmeros. Também nas políticas de educação superior o uso do referido adjetivo é recorrentemente utilizado. Na "Nova" República, na gestão de Jorge Bornhausen no MEC (14/02/86 a 05/10/87), para enfraquecer o pujante movimento que reivindicava a democratização da universidade, o governo lançou o projeto "Nova Universidade" (Geres) que institucionalizava muitos dos aspectos da contra-reforma de 1968. A seguir, no governo Collor, o ministro Carlos Chiarelli (15/03/90 a 21/08/91) apresentou a proposta de "Uma 'nova' política para o Ensino Superior". No governo Lula da Silva, o "novo" muda de lugar passando a ser posposto, e o projeto é então denominado "Universidade Nova", proposta apresentada publicamente pelo Reitor da UFBA, mas que em tudo coincide com as proposições do MEC (nota 1).

O que justifica o uso dessa qualificação pelos "reformistas" Bornhausen, Chiarelli e Genro-Haddad? A constatação de que a universidade brasileira não está em sintonia com os anseios da sociedade (com Bourdieu, leia-se, do mercado). O maior problema, salientam, é o bolor europeu que recobre a universidade pública, sinal evidente de seu envelhecimento. O diagnóstico é o mesmo do Banco Mundial em seu tristemente famoso "O BM e o Ensino Superior: Lições Derivadas da Experiência" (1994): as universidades públicas, gratuitas, assentadas na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão não servem para a América Latina. Os governos da região deveriam adotar um modelo mais simplificado em instituições não universitárias e, preferencialmente, privadas ou resultantes de parcerias público-privadas a exemplo do Prouni.

Em todos os intentos de contra-reformas dos anos 1980, 1990 e 2000, o objetivo foi ajustá-las às necessidades da sociedade (mercado). Mas como aproximá-las do mercado capitalista dependente sem o risco de uma onda de críticas e mobilizações dos segmentos que insistem que a universidade pública não é uma instituição de e para o mercado? No caso da última moda, a Universidade Nova, a idéia, conforme os seus proponentes, é moldar a "concepção acadêmica" a um contexto que, por força das "demandas da Sociedade do Conhecimento e de um mundo do trabalho marcado pela desregulamentação, flexibilidade e imprevisibilidade, certamente se consolidará como um dos modelos de educação superior de referência para o futuro próximo" (nota 2).

Mais claro impossível: o objetivo é converter o conhecimento em mercadoria ou em insumo para agregar valor a uma mercadoria, conforme requer a dita sociedade do conhecimento. Ora, conforme estudo de Mansfield (nota 3), as inovações tecnológicas não são feitas na universidade, mas na empresa. Assim, o objetivo da Universidade Nova é completamente estranho ao necessário debate sobre a função social das universidades no século XXI (e também ao próprio problema da inovação tecnológica realizada fora da universidade). Se essa primeira indicação não bastasse, o projeto assume, ainda, que a universidade deve formar recursos humanos para um mundo do trabalho desregulamentado e flexível, expressões eufêmicas para designar trabalhadores sem direitos e precarizados. Novamente, cabe indagar: é esse o objetivo da universidade?

Na prática, como seria a "Universidade Nova"? Em termos gerais, a proposta prevê os "Bacharelados Interdisciplinares (BI) que irão propiciar formação universitária geral, como uma pré-graduação que antecederá a formação profissional de graduação e a formação científica ou artística da pós-graduação" (nota 4). A versão do MEC propugna que parte dessas poucas disciplinas deverá ser ministrada por meio de educação a distância, mesmo nos cursos presenciais. Ao final dessa rebaixada formação "o aluno da Universidade Nova poderá enfrentar o mundo do trabalho, com diploma de bacharel em área geral de conhecimento (Artes, Humanidades, Ciências, Tecnologias)" (nota 5).

Com esses cursos invertebrados de curta duração (3 anos), seria possível massificar o acesso ao ensino superior (117% até 2012) (nota 6), reduzindo a pressão por vagas nas instituições públicas, sem a necessidade de maior aporte de recursos e de novos professores e, portanto, perfeitamente ajustada ao Programa de Aceleração do Crescimento que impedirá, por mais de uma década, as correções dos aviltantes salários dos professores e técnicos e administrativos e a contratação de novos servidores.

O injusto gargalo do vestibular - herança da ditadura empresarial-militar para acabar com os excedentes - seria multiplicado por dois: inicialmente, os estudantes fariam o inadequado ENEM e, ao final do escolão aconteceria a seleção meritocrática, no pior sentido da expressão:

· Aluno(a)s vocacionados para a docência poderão prestar seleção para licenciaturas específicas com mais 1 a 2 anos de formação profissional, o que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;

· Aluno(a)s vocacionados para carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profissionais (p.ex. Arquitetura, Enfermagem, Direito, Medicina, Engenharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os créditos dos cursos do BI;

. Aluno(a)s com excepcional talento e desempenho, se aprovados em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas de pós-graduação, como o mestrado profissionalizante ou o mestrado acadêmico, podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisador (nota 7) (grifos e destaques meus).

Embora a proposta seja, à primeira vista, clara, o que facilita o debate público, os autores não mantêm a mesma clareza ao longo de todo o Documento. Nenhum projeto afirmaria que seu único objetivo é adequar a instituição ao mercado capitalista dependente e ao trabalho precarizado. Assim, ao longo do Documento, os autores buscam justificativas epistemológicas (interdisciplinaridade) e sociais (a especialização precoce que estaria na base da evasão estudantil) para legitimá-lo. Frente aos grandes objetivos da proposta apontados acima e ao seu conteúdo concreto (uma terminalidade minimalista), este texto não privilegiará essa linha de discussão, claramente acessória e ornamental, pois o cerne é o ajuste ao modelo Banco Mundial/ OCDE-Bolonha/Schwartzman (nota 8)/ MEC.

O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a expectativa da OCDE-Unesco que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver difundido em toda a Europa. Os que adotam o espelho europeu para ver a 'realidade brasileira´ fingem esquecer que está em curso na Europa um outro processo de articulação das instituições de ensino superior, reunindo apenas as universidades de maior prestígio e de tradição em pesquisa. Assim, estão em curso na Europa dois níveis de integração:

a) a do Pacto de Bolonha: nos moldes dos "escolões" que servem de barreira de contenção para que apenas uma pequena parcela tenha acesso à graduação plena, capaz de assegurar uma determinada formação, legitimando a precarização generalizada da maioria (no caso francês, 80% dos estudantes);

b) a das instituições de excelência, objetivando formar as classes dominantes e produzir conhecimento estratégico.

Tardiamente, esse modelo chegou como um paradigma a ser seguido nas políticas para a universidade brasileira, justo em um momento em que é consolidado o consenso na comunidade acadêmica de que a chamada reforma da educação superior expressa no PL 7200/06 é perniciosa para o futuro da educação pública. No Brasil, o modelo Attali/ Simon Schwartzman/ MEC é difundido como a nova "alternativa genial" da estação. Tal como o PROUNI, apresentado como "idéia genial" que possibilitaria vagas ditas públicas sem que o Estado necessitasse desembolsar um centavo sequer, o projeto Universidade Nova objetiva ampliar o número de vagas para estudantes nas instituições públicas sem alterar o padrão medíocre de financiamento da educação. A ausência de recursos novos para a educação superior pública (confirmada pelo PL 7200/06) é o fulcro do debate sobre as alternativas de graduação aligeirada.

Caberia uma análise específica das conseqüências desse modelo de bacharelado para as instituições privado-mercantis. Falar em barbárie é pouco para caracterizar essas implicações.

A comunidade universitária, os movimentos sociais e os setores sociais devotados à causa da educação pública não podem se furtar da luta para impedir que a velha agenda, sob o manto do "novo", destrua o importante patrimônio social que são as universidades públicas. No âmago dessas lutas, os protagonistas terão de discutir uma agenda alternativa para a educação superior brasileira com proposições objetivas e originais capazes de empolgar outros setores sociais, em especial da juventude. As lutas na América Latina confirmam que as universidades, embora instituições milenares, são instituições abertas ao tempo. Por isso, não podemos esmorecer frente a mais essa ofensiva contra-reformista, assumindo papel protagonista na defesa de uma agenda capaz de revolucionar a universidade brasileira.

Notas

1) No âmbito do MEC, os fundamentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto de Lei Orgânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primeiro deles de "formação geral" (Art. 21). Conforme matéria de Demétrio Weber (MEC planeja criar 680 mil vagas nas federais, O Globo, 14/2/07, p.8), o MEC assume o projeto Universidade Nova e, para submeter as universidades ao projeto, irá exigir, em contrapartida ao repasse de modestos recursos (cerca de R$ 600 milhões /ano), a adoção da "pré-graduação" (3 anos), o sistema de cotas (em uma acepção liberal), a substituição do vestibular pelo precário ENEM, o uso da educação a distância, mesmo em cursos presenciais, entre outras medidas. Na matéria está explícito que o repasse condicionado de recursos objetiva burlar a autonomia universitária.

2) Universidade Nova: Descrição da Proposta. Acesso em 12/02/07.

3) Mansfield, Edwin 1998 Academic research and industrial innovation: An update of empirical findings Research Policy 26, p. 773-776

4) Universidade Nova: Descrição da Proposta (op.cit)

5) Idem.

6) Demétrio Weber, op.cit.

7) Erro! A referência de hyperlink não é válida.

8) No período mais recente a proposta de um curso "genérico" e de curta duração foi retomada por Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE na gestão Cardoso. Ver Antônio Góis. Sociólogo defende curso de curta duração para carentes. FSP, 03/06/2002. Em linhas gerais, a mesma alternativa é defendida no modelo Universidade Nova, difundida pelo reitor da UFBA.

Roberto Leher é professor da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenador do Grupo de Trabalho Universidade e Sociedade do Clacs


A UNIVERSIDADE DO ESPETÁCULO*

PERSONAGENS:

R: Reitor (que tem que estar caracterizado com um rabo-de-cavalo, de preferência um rabo-de-cavalo bem grande pra ficar uma coisa tosca e caricatural)
D: Duda, o Marqueteiro
M: Mr. Money, pode ter um sotaque de gringo
S: Representante dos Movimentos Sociais

CENÁRIO: uma mesa e uma cadeira, representando o gabinete do reitor. Pra ilustrar a auto-adoração do reitor, na parede podia ter uma foto dele próprio, que no caso podia ser uma charge numa cartolina grande.


O reitor está sentado em sua cadeira com a cabeça baixa entre as mãos, cheio de tiques nervosos e com ar de preocupação. Duda entra.

D: Mandou chamar, Magnífico?

R: Sim, Duda, eu preciso ter uma conversa muito séria e confidencial com você. Eu preciso de sua avaliação sobre minha atuação enquanto reitor desta universidade, mas eu preciso que você seja absolutamente sincero, está me entendendo?

D: Minha avaliação? Mas por que eu?

R: Ora, Duda, você me acompanha há anos como meu secretário, assessor, assistente de marketing e, principalmente, como meu estilista capilar pessoal e, graças aos seus sábios conselhos, eu posso me orgulhar de ser o reitor com a cabeleira mais lustrosa de todas as universidades federais da Bahia!!! Você é a única pessoa em quem eu posso confiar pra uma opinião realmente sincera!!!

D: Mas o que o Vossa Magnificência quer saber?

R: Duda, Duda, a vida de um reitor é dura, eu relutei muito, mas preciso lhe confessar: EU ESTOU EM CRISE!!! Eu olho o meu histórico impecável como reitor, Duda, mas as pessoas ainda não reconhecem o meu brilhantismo, as pessoas não vêm que eu sou Magnífico, Duda, Magnífico!!! Me responda: eu não revolucionei a história das universidades brasileiras ao ser o primeiro reitor de uma universidade federal a implementar as cotas???

D: Bom, na verdade o senhor foi contra as cotas desde o início, aí vieram as pressões do movimento negro e do movimento estudantil que ocuparam a reitoria e eu lhe aconselhei que seria melhor pra sua imagem mudar de lado taticamente...

R: COMO OUSA??? (Batendo na mesa) Até tu, Duda? (Mudando pra um tom mais amistoso) Duda, meu querido, você sabe que eu posso abrir um processo contra você por calúnia e difamação e lhe demitir???

D: Mas Vossa Magnificência me compreendeu errado, ou melhor, eu me expressei errado, afinal o senhor acabou de se reeleger como o reitor das cotas!!!

R: Hum, assim está bem melhor. Mas me diga, Duda, eu não sou o reitor que teve coragem de expulsar a FBC?

D: Bem, na verdade o senhor defendeu a FBC até a alma, mas aí vieram as pressões do movimento estudantil, o escândalo estourou e, felizmente, eu lhe aconselhei a adotar uma postura mais favorável à sua imagem...

R: Você está querendo insinuar que só porque eu uso de todos os meios escusos possíveis e impossíveis pra a universidade não cobrar a dívida de R$ 32 milhões da FBC eu tenho algum tipo de ligação espúria com a fundação, É ISSO QUE VOCÊ ESTÁ QUERENDO DIZER???

D: De maneira alguma, Magnífico, afinal Vossa Magnificência acaba de se reeleger como o reitor que expulsou a FBC...

R: Ah, bom... Mas, Duda, Duda, marketeiro meu, respondei-me, por favor: existe algum reitor com cabelo mais lustroso que o meu?

D: Impossível, Magnífico...

R: Então, Duda, então!!! Eu tenho tudo pra ser o maior reitor da história dessa universidade, mas não posso ter meu nome com essa marca na História por causa... Por causa daquele MALDITO DO EDGAR SANTOS!!!! MALDITO!!! Eu preciso superar ele e ser o maior reitor da história, Duda, EU PRECISO!!!! (Num tom menos nervoso) E então, alguma idéia???

D: Hum, não sei... O que está me parecendo é que pra algo tão grandioso o senhor teria que mudar a universidade inteira, construir uma nova universidade...

R: Uma nova universidade???

D: Sim, mas temos que trabalhar mais nisso. Agora não temos tempo porque o senhor tem um encontro marcado com Mr. Money, representante dos empresários e do capital internacional.

R: Mr. Money??? Mande entrar agora mesmo!!!

Entra Mr. Money.

R: Mr. Money, é uma honra recebê-lo, a nossa universidade está à venda, digo, está de braços abertos para parcerias favoráveis a ambos os lados...

M: Parcerias favoráveis a ambos os lados diminuem os nossos lucros, estúpido!!!

R: Bom, então que sejam favoráveis só a vocês, nós já nos sentimos felizes de poder ajudar, é uma honra enorme...

M: Cala a boca, idiota!

R: Sim, senhor!

M: Sentado!

R: Oh, muito gentil de sua parte... (Senta)

M: É o seguinte, vou ser breve e claro: o modelo atual de universidade está obsoleto e não interessa mais ao capital. O que nós precisamos é explorar mão-de-obra barata e, com o mercado de trabalho cada vez mais flexível, nós precisamos de trabalhadores mais flexíveis pra que possam ser melhor explorados, e a universidade não está colaborando com isso! Nós precisamos de uma formação que seja ao mesmo tempo mais generalista e mais tecnicista, pra o que o mesmo trabalhador possa desempenhar cada vez mais funções e, assim, tirar a vagas de sues colegas, aumentando o exército de reserva e, consequentemente, baixando o valor da mão-de-obra! E isso já uma tendência no mundo inteiro, é uma diretriz do Banco Mundial, os Estados Unidos já estão muito avançados nesse processo, a Europa também está avançando através do Protocolo de Bolonha, e vocês, aqui, presos à universidade do século XIX!!!

R: M-m-mas como é que eu vou fazer isso? Eu garanto ao senhor que o nosso ensino, nossa pesquisa e nossa extensão já são cada vez mais voltados ao tecnicismo, ao lucro e ao mercado de trabalho!!! Aliás, o exemplo mais bem-sucedido desse processo de privatização interna da universidade pública são as fundações de direito privado, que se utilizam de nosso espaço, nossos laboratórios, nossos professores, nosso conhecimento, nosso status, tudo voltado pra o lucro delas mesmas e, o melhor, sem pagar absolutamente nada à universidade ou, no máximo, repassando migalhas perto do lucro monstruoso delas! É o mais puro neoliberalismo aplicado dentro das universidades públicas, o que resta a privatizar de fato é muito pouco, eu não vejo como podemos ir muito além...

M: De tudo isso eu já sei, estúpido, mas a forma como vocês fazem isso é que está ultrapassada, o modelo atual de vocês de privatização e de subserviência aos interesses do capital está obsoleto, o capitalismo evolui a passos largos, e a universidade tem que acompanhar esse processo! Como vocês vão fazer isso eu não sei, dê seus pulos, o que nós queremos é produtividade e resultados, o que nós precisamos é de uma nova universidade! Passar bem!

Mr. Money se retira.

R: Uma nova universidade??? Mas como é que eu vou fazer isso??? E agora, o que é que eu faço???

D: Depois o senhor pensa nisso, agora está aí fora um representante do governo federal querendo conversar com o senhor.

R: Está bem, está bem, pode mandar entrar.

Entra Mr. Money.

R: Mr. Money? Mas eu esperava um representante do governo federal...

M: Mas sou eu mesmo, é que além de especulador financeiro internacional, empresário e tubarão da educação superior privada, nas horas vagas eu faço bico como assessor do MEC, já que nossos interesses são os mesmos...

R: Pois é uma dupla honra recebê-lo como representante também do governo, nossa universidade está totalmente submissa, digo, à disposição pra colaborar com o que o governo precisar...

M: Pois bem, vou ser curto e grosso: este modelo de universidade pública é muito caro e não interessa mais ao governo. Você bem sabe que nós seguimos caninamente a orientação do Bando Mundial e priorizamos os recursos públicos pra as universidades privadas, como é o caso do FIES e do PROUNI, que, somados, superam em muito o valor investido nas universidades públicas, mas ainda estamos muito longe do ideal. Apesar de todos os esforços históricos desde a ditadura pra sucatear completamente o ensino superior público, por pressão dos movimentos sociais ainda restam uns requícios ultrapassados de preocupação com coisas esdrúxulas e dispendiosas como a qualidade da formação acadêmica! A implantação do Protocolo de Bolonha na Europa é um exemplo maravilhoso da desresponsabilização do Estado com a educação superior pública: lá, nas universidades que já adotam o Protocolo, mesmo o ensino público é pago, e pra baratear os custos eles criaram um ciclo básico de 3 anos com uma formação genérica voltada pra o mercado de trabalho flexível, no qual só é necessário um professor pra uma turma gigantesca, com mais de cem alunos!!! É disso que o governo precisa, o mesmo que as empresas: reduzir os custos aumentando a produtividade e, consequentemente o lucro, que no caso do governo é o superávit primário pra pagar os banqueiros que financiam as nossas campanhas. Lembre que este governo quer colocar seu nome na História desse país como o maior em todos os aspectos, principalmente nas áreas em que não faz nada!!! O governo quer resultados e produtividade, o governo quer uma nova universidade, e você precisa dar um jeito nisso!!!

R: Uma universidade nova, m-m-mas como??? A pouca verba que a gente recebe a gente já destina aos cursos mais elitizados e privatizados, como criar um novo modelo de universidade mais barata?

M: Dê seus pulos, eu quero que você me traga as soluções, não os problemas! Passar bem.

Mr. Money se retira.

R: E agora, o que será de mim???

D: Calma, Magnífico, agora não é hora pra desespero, aí fora tem um bando gente mal vestida dizendo que são de vários movimentos populares e que exigem uma audiência com o senhor senão ocupam a reitoria!

R: Ai, meu Deus, lá vem essa gente rude e mal vestida, bando de baderneiros!!! Eu não já dei as cotas a eles, o que é que esse povo quer mais? Agora só falta eles virem exigir que, além do acesso, a gente dê condições de os negros permanecerem na universidade, daqui a pouco eles vão querer restaurante universitário, bolsas e mais vagas nas residências universitárias!!! Assim não pode, assim não dá!!!

D: Mas tudo isso são reivindicações do movimento estudantil e negro que o senhor prometeu cumprir e até hoje não fez nada...

R: NÃO FIZ NADA??? COMO NÃO FIZ NADA??? Já faz quase dez anos que estou construindo aquele restaurante universitário e você diz que eu não fiz nada???

D: É, por esse ponto de vista...

R: Mas mande esse povinho entrar logo, mas só um representante deles, que mais que isso me dá alergia e faz mal aos meus cabelos lustrosos...

Entra o Representante dos Movimentos Sociais.

R: Pois não?

S: Nós estamos aqui mobilizados porque não agüentamos mais esse modelo de universidade elitista e excludente, cada vez mais privatizada, mais tecnicista, mais sucateada e mais a serviço da capital. O compromisso social estampado nos outdoors é uma farsa, a universidade não tem a mínima preocupação em desenvolver conhcimentos que atendam às demandas populares, as pesquisas são pautadas pelo que as empresas querem, o ensino é cada vez mais rankeador, tecnicista e voltado pra o mercado de trabalho, a extensão está virando sinônimo de cursos pagos, já que estão tentando acabar com as ACC’s, e a assistência estudantil é uma verdadeira piada, as residências universitárias estão a ponto de desabar! Nós queremos uma mudança total, nós queremos uma universidade não apenas nova, mas POPULAR, sem vestibular, com ampliação do número de vagas, com uma formação mais humanística, enfim, uma universidade que atenda às reivindicações históricas dos trabalhadores, dos desempregados e dos excluídos! E nós exigimos uma resposta contundente do senhor com relação a essas reivindicações imediatamente!

R: Her... Bem, eu adoraria, mas infelizmente tenho um outro compromisso inadiável marcado e já estou atrasado, mas eu lhe dou minha palavra de que marcaremos uma outra oportunidade pra conversarmos melhor sobre isso com mais tempo...

S: Pois bem, dessa vez nós vamos embora e vamos deixar aqui um documento com todas as nossas reivindicações pra vocês tomarem as providências, se não formos atendidos a gente ocupa essa reitoria, porque essa situação está chegando ao limite, se a universidade não mudar por bem urgentemente, é o povo que vai fazer ela mudar na marra!!!

O Representante dos Movimentos Sociais se retira.

R: Está vendo, Duda? Está vendo? (Apontando pra fora com cara de desespero) É por isso que eu morro de medo do povo, mais do que de qualquer outra coisa, porque na hora que eles perceberem que se organizando e se unindo eles têm todo o poder nas mãos, nós estaremos ferrados!!! A nossa sorte é que eles não sabem disso e nós, que sabemos, fazemos de tudo pra fragmentar a luta deles, e a universidade tem um papel fundamental nesse processo... É por isso que, de todas as medidas do plano de segurança aprovado há mais de dois anos, a primeira coisa que estou fazendo é cercar a universidade inteira, pra essa gente perceber que não é porque a universidade é pública que ela é do povo!!! Se dependesse só de mim, seria logo uma cerca elétrica!!!

D: Sim, Magnífico, mas é justamente por causa dessa ameaça de a pressão popular explodir a qualquer momento que é mais necessário que nunca o tomarmos uma atitude paliativa pra refrear as pressões...

R: Mas como, Duda, como? Isso só pode ser uma conspiração, uma conspiração pra tirar meu sono e me fazer perder meus cabelos lustrosos, não é possível!!! Estou sendo pressionado de todos os lados, isso deve ser alguma maldição do espírito do desgraçado do Edgard Santos...

D: Calma, Magnífico, faça do limão uma limonada!!! É só juntar todas essas reivindicações num bolo só...

R: Como, anta, se são totalmente inconciliáveis???

D: Veja bem, seus interesses pessoais, os interesses do governo e os dos empresários são os mesmos, o inconciliável são as reivindicações dos movimentos sociais, mas aí é que está seu grande trunfo... O senhor pega o projeto neoliberal de flexibilização da formação da mão-de-obra e de diminuição dos custos, joga uma retórica de esquerda e incorpora algumas bandeiras históricas dos movimentos sociais, tipo fim do vestibular, expansão do número de vagas, formação mais humanística e essas baboseiras todas, mas claro que deturpadas, atendendo aos interesses do capital. Vai atender ao que a direita quer e, ao mesmo tempo, a esquerda não vai ter coragem de ser contra um projeto com algumas de suas reivindicações históricas nos slogans e, se tiverem, é só o senhor tachar eles de retrógrados que são a favor do modelo excludente da universidade do século XIX!!! E pra completar, precisa ser um projeto pop, o senhor precisa ser o reitor show-man, tem que aparecer na grande mídia toda antes de ser discutido dentro da universidade, porque aí já vai ter sido criado um clima de consenso, depois disso, pra dar um ar de democracia, o senhor faz uma palestra em cada unidade, muda um ponto ou outro do projeto pra dizer que houve diálogo e... voilá!!! Estará criado o maior reitor da história desta universidade, quem sabe até do país, já que é bem provável que o governo queira implantar o projeto no país inteiro, se duvidar eles até desistem do Projeto de Reforma Universitária, o nosso projeto é muito melhor e mais profundo... Ah, e nas apresentações do projeto convém falar o mínimo possível sobre o projeto, o ideal é passar pelo menos 90% do tempo falando sobre o histórico da universidade desde Platão, enrolando bastante na parte de Kant, e criticando o modelo atual, que é uma coisa bem mais consensual. É bom também pegar o nome de uns dois medalhões incontestáveis mas que ninguém conhece realmente na área de educação e dizer que o projeto foi inspirado neles, mas tem que ser dois mortos, que é pra não correr o risco de eles lhe desmentirem. Tipo Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, sei lá... Na hora das divergências mesmo, o senhor usa sua milenar técnica de se retirar do espaço porque o tempo acabou. E pra coroar, como todo produto capitalista, precisamos de uma marca nova, uma marca que mostre que os velhos tempos ficaram pra trás... Já sei: vai ser a nossa “Nova Universidade”, que tal???

R: Que “nossa”, meu filho, está maluco? Se enxerga, você é um mero consultor de marketing, a mente pensante aqui sou eu!!! Essa sua idéia de “Nova Universidade” é esdrúxula e ridícula, a minha sim é brilhante: eu vou fazer exatamente o que os empresários e o governo querem, mas incorporando as bandeiras dos movimentos sociais de maneira deturpada, atendendo aos interesses do capital, tudo com um projeto de divulgação super-pop e, adivinhe, estará pronto o meu projeto: o “UNIVERSIDADE NOVA”!!!! HUAHAHAUHUAH!!! Eu sou um gênio!!! UNIVERSIDADE NOVA!!! Eu vou entrar pra a História, eu venci Edgard Santos!!!! UAHUAHUAHUHAHAHA (Risada fantasmagórica de vilão de desenho animado)

FIM

*Por Henrique Souza, militante da Comuna