[Por Rafael Zanatto]
Meus caros, minhas caras,
Convido-vos a um pequeno exercício de reflexão.
Leiam o relato que vem nesta mensagem. Quem o escreveu foi um aluno da Unesp, um dos sete expulsos do campus de Franca há dois anos atrás, que agora estuda noutro campus. Mas antes de transcrever o relato, faço uma pergunta, a vocês e a mim mesmo. A censura interna nos grandes órgãos de comunicação e a deturpação sistemática dos acontecimentos dever-se-á apenas à necessidade de enganar que caracteriza as elites dominantes ou dever-se-á também à necessidade sentida por muitas pessoas de serem enganadas para justificarem a si mesmas a passividade e a indiferença em que preferem viver?
Cordialmente,
João Bernardo
Esse processo não é atual. Historicamente, a intelectualidade se originou bem longe dos antros acadêmicos. No início, a produção do conhecimento humano se desenvolvia nos guetos. Os intelectuais viviam em bairros repletos de quartos de aluguel baratos, caminhavam pelas ruas cercadas de restaurantes modestos e cafés em que o calor do debate se desenvolvia livre das normas que o capital impõe sobre as produções acadêmicas de hoje
A universidade, abastecida pela capitalização de alguns intelectuais envelhecidos, cansados da boêmia e da instabilidade de suas vidas, trocaram os guetos pelos campi universitários, do qual passaram a ministrar aulas em que transmitiam seu conhecimento adquirido através de uma vida de revezes a jovens sem a inconstância em que fora forjada a lâmina que despe os valores morais, condição necessária para otimizar a produção do conhecimento. Não há aprendizado que não seja realmente aprendido na prática. A prática determina uma ótica crítica. O efeito é terrível. Grandes quantidades de jovens apáticos entram e saem da universidade da mesma maneira, acostumados com o mínimo. Eles não compartilham mais da sede, da inconstância, da reformulação do pensamento. E se não há reformulação ou desconstrução, a causa exposta em regressão, expressa o efeito meramente reprodutivo do conhecimento. Há hoje, entre os habitantes do cofre do conhecimento, um consenso. As facilidades que a reprodução permite compassa perfeitamente com a tecnização por qual passa a humanidade. O capital cada vez mais treina máquinas biológicas necessárias para a movimentação de suas engrenagens. A universidade, repleta por essa geração de professores acadêmicos, discípulos dos intelectuais do passado, não mais fazem valer o costume de o discípulo superar o mestre.
A universidade no atual momento, já sepulta em seus corredores o último fiasco do novo que resta de seu passado. Pelas ruas, não mais se ouve o grito dos intelectuais, não mais se ouve canções subversivas que no início emanavam da universidade na década de 60. O conhecimento cada vez mais se dissipa na especialização que o ideário mercadológico das produções de teses exige. Mas, como essas palavras jogadas e dispostas em ordem estritamente irracional podem ser vinculadas às medidas totalizadoras que o governo Serra implementou, com o estabelecimento das secretarias de ensino superior?
Com o estabelecimento das secretarias, toda a verba destinada às universidades públicas paulistas (USP, Unesp e Unicamp) passariam antes por uma comissão fiscal, que avaliaria a viabilidade dos projetos que fossem encaminhados a esse departamento. Alguns talvez perguntem: qual o significado disso tudo? O que mudaria na vida universitária? Poderia aqui expor uma grande gama de micro projetos e novas articulações burocráticas por qual seria fácil adaptar novos mecanismos de corrupção, além dos atuais existentes, mas procurarei me ater às conseqüências diretas.
A implantação das secretarias significaria a perda da autonomia que a burocracia universitária tem em gastar a verba pública que lhe já é escassa. As verbas das universidades públicas foram mantidas estáticas, não acompanharam simultaneamente as políticas de expansão de cursos superiores que o governo anterior e o atual vêm desenvolvendo. Com a expansão dos cursos e a manutenção da verba em um mesmo percentual, duas conseqüências comprometedoras recaem sobre a organização universitária. Com a escassez da verba, alguns cursos superiores que favorecem diretamente a multiplicação do capital, como as áreas voltadas à tecnologia, recorrem ao capital externo, sobrevivendo dessa maneira, capitalizando diretamente a produção do conhecimento. Já outras áreas do pensamento, como as ciências humanas, e quando digo humanas, me refiro às disciplinas voltadas ao real significado que o termo "humano" demanda, e assim, conceituando, excluo dessa definição as ciências jurídicas, por entender que a preservação do "direito de exploração" de um indivíduo sobre outro não compactuam com a minha real intenção de lapidar um termo adequado que defina as ciências "humanas". Essas ciências são condenadas ao sucateamento quase que imediato, se reconhecermos que nessa área do conhecimento, o retorno de capital ao mercado se faz paulatino, em contradição com o retorno de capital quase que instantâneo nas áreas mercadológicas. A privatização da universidade está em um processo desenfreado de finalização, e tais medidas governamentais só materializam tais afirmativas.
Aos estudantes, a perda de autonomia das universidades dificultaria ainda mais as lutas estudantis, devido à construção de outra barreira intransponível na máquina burocrática. Algumas exigências, por exemplo, moradia estudantil, bolsas de apoio, refeições a preços acessíveis, professores renovadores, aproximações com os ambientes sociais e as demais exigências que ecoam silenciosamente nas mentes intranqüilas dos estudantes, não poderiam ser exigidas diretamente as tradicionais ordens burocráticas locais, as decisões passariam a ser decididas centralmente, longe dos focos a onde seriam empregados o capital. Em decorrência, há um entrave nas lutas estudantis, tanto logística como burocraticamente.
Da ineficácia da qual é intrínseca à implantação das secretarias, nos resta apontar mais alguns aspectos que comprometem, não apenas em longo prazo, mas o cotidiano das unidades de ensino superior. Algumas medidas administrativas vinculadas ao propósito de obras emergenciais ou expansão infra-estrutural necessária para o andamento normal das atividades acadêmicas seriam submetidas à secretaria que avaliaria a real necessidade do projeto. Mas como desvincular localmente decisões que cabem senão à localidade, às unidades em si! Tal ignorância me parece assombrosa. Mas esta é a questão, não há ignorância, há um desejo sádico incrustado na superfície desse decreto inescrupuloso e vil. Um desejo que só é explicado pelo egoísmo tão particular dos políticos, em seu desejo incessante de controlar e julgar.
O que está em jogo hoje não é apenas mais um passo ao controle desenfreado do autoritarismo empreendido nessa questão pelo estado, mas a finalização de um processo que já está em andamento há anos, a privatização está em fase de consolidação. Resta aos resquícios da intelectualidade resistir a tais medidas. Não abandonem o templo, professores acadêmicos! Qualquer consenso há médio prazo, será prejudicial à manutenção da universidade como bem público. Não há como haver acordo, e os estudantes da USP, Unesp e Unicamp estão cientes de que um desfecho que não seja o recuo estatal, sepultará o que resta do podre cadáver que se converteu a universidade. A luta cada vez mais se expande. As unidades satélites das universidades estaduais se colocam em greve sob tais exigências: Não à burocratização. Não ao sucateamento. Não à capitalização do conhecimento! Não ao partidarismo. Pela liberdade incondicional, pela luta, pelo futuro.