UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Universidade Nova para o novo capital


[Daniel Caribé - Militante da COMUNA]

[Publicado em: www.espacoacademico.com.br/075/75caribe.htm]

Em 1918, antes mesmo de ser fundada a primeira universidade brasileira, os estudantes em Córdoba, uma das províncias da Argentina, já haviam lançado as referências para as lutas que se seguiriam por quase todo o século à frente e que muitas vezes foram esquecidas. Os estudantes de Córdoba não queriam somente mais verbas para a educação: queriam mesmo é participar do controle do processo de produção do conhecimento e, conseqüentemente, da gestão da universidade. Estavam assim em sintonia com as lutas dos trabalhadores que aconteceram na primeira metade do século em todo mundo. A construção de uma universidade gratuita, autônoma e democrática era onde queriam chegar.

Essas bandeiras, entretanto, não apontavam de forma nítida para o caráter de classe da ciência, da técnica e da universidade. Era uma luta focada contra a tirania da burocracia acadêmica de até então, altamente subordinada à Igreja. Devido a esta lacuna, na América Latina, local onde o autoritarismo foi a regra, tanto o setor mais liberal da burguesia quanto os grupos da esquerda marxista reivindicaram para si a Reforma de Córdoba – aliás, é muito comum os liberais serem tirados enquanto progressistas nestas circunstâncias.

No Brasil, a história das universidades se encontra com a do resto da América Latina somente duas décadas depois. As primeiras unidades de ensino superior do país eram isoladas e se preocupavam mais em formar a nascente burocracia estatal. Eram locais privilegiados para os filhos da elite, sendo mais importantes pelo prestígio social que concediam aos seus estudantes do que pela formação técnica apreendida. A Escola Politécnica do Rio de Janeiro, as faculdades de Direito de São Paulo e Pernambuco, e a de Medicina na Bahia são exemplos. As primeiras universidades brasileiras de fato surgiram com um significativo atraso, e se formaram em torno destas faculdades isoladas. Esse processo se iniciou na década de 30 e foi daí que o ranço colonial começou a abrir caminho para outros projetos.

Mas ainda na década de 30 não havia uma clareza sobre qual modelo de universidade se implementaria por aqui. A própria Igreja Católica reivindicava para si o papel de proceder esta tarefa e assim manter um controle ideológico sobre a produção científica do país. Continuava a existir também a compreensão de que a universidade deveria ter um caráter tecnicista, seguindo o que já vinha acontecendo nas faculdades isoladas. Mas a concepção que venceu o debate defendia a subordinação da universidade a um projeto de desenvolvimento nacional.

Darcy Ribeiro, da metade do século XX para frente, foi um dos que representou esta última concepção de universidade, e também adotou para si os princípios explicitados no Manifiesto de Córdoba (ver o texto A Universidade Necessária, de 1969); assim como a UNE também o fez no início da década de 60, inclusive protagonizando a “greve de um terço”, de dimensão nacional, cuja pauta focava na paridade. A lacuna deixada pelos estudantes argentinos abriria espaço no Brasil para uma aliança de classes entre os setores até então considerados progressistas, no que confere à concepção de universidade em particular. É dado também que esta aliança se estendeu para um projeto mais amplo, e é marcante até os dias atuais, entretanto o desenvolvimento deste aspecto da história brasileira foge aos objetivos deste texto.

O fato é que mesmo tendo provocado poucas modificações na estrutura de poder das universidades, tendo as burocracias acadêmicas se perpetuado em seus "feudos" nos quais os estudantes e o corpo técnico quase nunca conseguiam penetrar, e as universidades nunca tendo sido livres e autônomas, a revolta em Córdoba deixaria profundas marcas em todo o sistema educacional superior latino-americano. Alguns elementos do manifesto ali lançado serviriam sempre de fundamento para aqueles que queriam reformar a universidade, independente do caráter da reforma.

Subordinada sempre aos interesses de alguma classe dominante, a concepção de universidade brasileira que primeiro se tornou hegemônica se preocupou principalmente com a construção de um projeto nacional-desenvolvimentista. Decidiu-se que o conhecimento deveria ser produzido para justificar tal modelo, além de colaborar com ele na construção de novas tecnologias (ou adaptação de tecnologias elaboradas em outros territórios). Além de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira também foi um dos idealizadores desta universidade que viu o início da sua derrocada com a imposição da Ditadura Militar. Esse projeto consistia na criação de dois tipos de universidade: 1) as regionais para atender interesses de determinados grupos locais e 2) universidades preocupadas em pensar o país como um todo, seguindo a idéia da necessidade da integração nacional através da subordinação das regiões menos desenvolvidas. Não é à toa que as universidades federais carregam o nome de cada estado em que são implementadas, enquanto as unidades preocupadas em pensar o país, notadamente as grandes universidades paulistas, são bancadas com recursos estaduais. Darcy Ribeiro, entretanto, talvez preocupado com esta concentração de poder, propôs a criação da Universidade de Brasília (UnB).

Essa universidade pensada por uma burguesia liberal não libertava nada.[1] O poder continuava concentrado nas mãos de uma burocracia acadêmica, que por sua vez estava atrelada aos interesses da classe dominante, que nesse caso ainda era a burguesia nacional. Uma hierarquia bem nítida sustentava o poder nas universidades. Os estudantes não poderiam participar das decisões, assim como a universidade se portava de forma autoritária em relação à classe trabalhadora. Enquanto o capital nacional exigia um modelo de universidade e era atendido, os trabalhadores só eram objetos deste modelo quando se necessitava de um tipo especializado de mão-de-obra.

Mas não durou muito a hegemonia da fração liberal da burguesia e o seu projeto nacional-desenvolvimentista, principalmente porque permitia em conjunto uma perigosa ascensão da classe trabalhadora. A Ditadura Militar surge como uma nova configuração da aliança entre as classes dominantes, subjugada aos interesses do capital estrangeiro. Assim a universidade burguesa entra em declínio. Porém, a forma que a Ditadura Militar escolheu para destruir este projeto, em um primeiro momento, foi o de ampliar seus recursos e o expandir por todo o país, inclusive incentivando o surgimento de instituições privadas, mas decapitando-o, destruindo a intelligentsia ou subordinado-a aos militares.[2] Não caberia mais à universidade pensar o Brasil, mas fornecer o "recurso humano" necessário para o projeto imposto de forma autoritária. Daí duas tendências são marcantes: 1) há um aumento significativo dos estudantes oriundos da classe trabalhadora e a consolidação da idéia de universidade enquanto espaço de ascensão social; 2) aumento da repressão, tanto do Estado quanto da burocracia acadêmica, facilitada pela hierarquização rígida de poder imposta nas universidades em momentos anteriores. Por esta combinação de fatores é que a repressão teve que aumentar na mesma proporção em que menos elitizada ficou a universidade.

Esse modelo acompanhou os anos do "milagre econômico" para logo a frente ser esquecido mais uma vez. Com os novos rumos que a economia mundial tomou a partir de meados da década de 70, a expansão da universidade "pública" brasileira foi freada e começou o ciclo inverso. A quantidade de vagas continuou a crescer, mas em um ritmo muito mais lento e de forma descompromissada. Os setores considerados progressistas, tanto o setor ligado a uma parte da burguesia nacional quanto aos partidos de orientação marxista, voltaram a reivindicar a universidade liberal de forma semelhante, resgatando quase sempre as bandeiras da Reforma de Córdoba.

O abandono da universidade estatal brasileira pela ditadura militar, o que se estende pelos governos neoliberais da época democrática, se configura como o momento não só de descaso com o ensino superior, mas com o período de ascensão da burocracia acadêmica. Aliás, é típico das burocracias surgirem de forma "napoleônica" – quando as classes não conseguem resolver-se; ou no vazio, quando as classes sociais não disputam o espaço. Em um espaço onde as classes dominantes hegemônicas já não têm interesse em manter, mas que também não é dominado pelos trabalhadores, era quase natural que uma burocracia deste tipo surgisse como classe mais forte.

Essa burocracia acadêmica era beneficiada com o descaso porque quanto mais os recursos governamentais eram contingenciados (medida que se tem reflete tanto no arrocho salarial quanto na diminuição de recursos para a manutenção das estruturas físicas), mais aberto ficava o campo para a captação de recursos no mercado. A cada novo corte no orçamento, mais legítima ficava a ação deste setor, e mais dependente ficava a universidade desta lógica. É verdade que há até os dias de hoje locais isolados que resistem a este processo, um ou outro departamento, grupo de pesquisa ou atividade de extensão, e que por isso pagam o preço do esquecimento. No geral, a universidade está mais comprometida com interesses das grandes corporações, desde bancos privados até empresas do Estado, que usam destas instituições para capacitação dos seus quadros de funcionários e gerentes ou para produzir o "saber" capaz de legitimar suas ações predatórias e aumentar os lucros. O máximo de preocupação que a universidade passaria a ter com a sociedade extra-empresarial era na elaboração dos artifícios ideológicos que visam humanizar as ações das firmas.

Atualmente, a Reforma Universitária apresentada pelo governo Lula se configura como a última facada, o tiro de misericórdia neste modelo burguês de universidade que por pouco tempo foi útil. O objetivo explícito é diminuir ainda mais os recursos destinados a estas instituições – já que vendê-las ainda não é possível devido a cada vez mais enfraquecida resistência que se criara dentro destes espaços – e assim acelerar o processo de sua destruição. Podemos afirmar tranquilamente que a última proposta de Reforma Universitária (inclui-se aí suas diversas revisões) vem para dar continuidade ao que se iniciou ainda na Ditadura Militar. Assim, incentiva a criação de outros modelos de universidade, ainda mais atrelados ao capital privado, quando não totalmente subordinados por este, e que não têm nenhum compromisso com qualquer tipo de projeto nacional.

Mas essas universidades desconfiguradas não se apresentavam ainda como o modelo de universidade que as novas classes dominantes – o capital financeiro e as grandes corporações transnacionais – desejam, não só para o Brasil, mas para todo o globo. A Reforma Universitária não é capaz de implementar este modelo por completo, pois lá não há nenhuma proposição, além de corte de verbas e financiamento do capital privado.

A Universidade no contexto atual

Basicamente, o modelo de universidade que o capital financeiro e as corporações almejam deve ter por objetivo atender ao mundo do trabalho cada vez mais flexibilizado através do treinamento de mão-de-obra qualificada – mas mal remunerada. A universidade tem que ser responsável por criar um excedente de trabalhadores que pressionem os salários ainda mais para baixo no intuito de atrair investimentos estrangeiros. A produção de conhecimento deve ser concentrada em poucos países, tendo em cada país periférico um número bem reduzido de universidades com o papel de reproduzir. A grande maioria, portanto, estaria destinada exclusivamente ao ensino. Enquanto o ensino pode continuar a ser financiado pelos Estados nacionais, mas com recursos reduzidos ao limite e dando preferência para as universidades particulares, a pesquisa deve ser subordinada ao capital privado e realizada em centros de excelência. Os currículos devem ser flexíveis, ou até inexistentes, para que a cada solicitação do mercado possa rapidamente haver uma reestruturação. Essa estrutura tem que ser uniforme em todo território nacional, e seguir os padrões internacionais, para que os "excelentes" possam migrar com facilidade para os centros, enquanto os "medíocres" possam completar seus estudos em universidades de nível inferior. Nos países periféricos, ainda surgirão aqueles piores que os "medíocres", que não devem continuar de forma alguma nas universidades. Estes últimos formarão a maioria.

Os Estados Unidos já tinham aplicado este modelo, assim como a Europa o faz neste momento. No EUA há as universidades de elite, todas particulares (mas que recebem gordos financiamentos estatais), nas quais só os filhos das classes privilegiadas podem freqüentar; e há universidades para os pobres, com cursos de curta duração, mas que não permitem ao estudante participar da construção do saber, e nem alterar a estrutura de poder da sociedade. Forma-se uma mão-de-obra altamente descartável.

Na Europa este processo ganhou o nome de Protocolo (ou Processo) de Bolonha e é uma imposição da União Européia para os países que desejam entrar neste circuito. Não precisamos lembrar de que forma a juventude de diversos países resistiram e resistem a este processo. Na França, por exemplo, onde quase toda a juventude adentra nas universidades, este projeto já mostrou todo o seu caráter racista. A maioria dos jovens fica nos ciclos básicos, quando só a "excelência" avança para a universidade que produz conhecimento. É importante lembrar que são os jovens imigrantes ou filhos de imigrantes os que mais ficam pelo caminho. Os que podem pagar, com toda a certeza, sendo "excelentes" ou não, arrumam uma vaga nas universidades particulares, que também vêm ganhando força por lá. E a "excelência" é formada quase que completamente pelos jovens ricos, que devido à inexistência da preocupação com o mundo do trabalho podem investir mais tempo e recursos na própria formação.

Em países periféricos da Europa, como Portugal, a situação é mais grave. As universidades tendem a se transformar em imensos "escolões", já que não cabe a este país produzir conhecimento nenhum – a não ser nos centros de pesquisa financiados pelas corporações. Os que podem pagar que mandem seus filhos para alguma universidade particular dos países centrais.

Chegou, então, a vez do Brasil aderir a este protocolo, já que a Reforma Universitária se apresenta incompleta. Antes de ser um projeto que saiu da cabeça de um reitor ou do próprio Ministério da Educação (MEC), a proposta apresentada como última novidade (a Universidade Nova) é um processo mundial de adaptação das universidades à nova dinâmica de acumulação do capital, e é importante que os movimentos que lutam contra a total transformação da educação em mercadoria compreendam o que se passa. O projeto Universidade Nova não esconde em momento nenhum que segue esta linha de reformas e explicita, sem nenhuma vergonha, o tipo de trabalhador que deseja criar.

A ironia da história (ou sua tragédia) é que depois de décadas sem saber do seu papel na sociedade, a universidade aponta novamente para um projeto, e finalmente tem a chance de estar atrelada a uma realidade maior. Depois da falência do projeto nacional-desenvolvimentista burguês não se ouviu mais falar de algo que ligasse a Universidade a alguma dinâmica de acumulação do capital, muito menos à emancipação dos trabalhadores. Ficou ela entregue a auto-reprodução da burocracia acadêmica. De certo, a Universidade Nova é um projeto modernizador, porém se trata de mais uma “modernização conservadora” como todas as outras formas de modernização impostas que aconteceram neste país. Se é moderno ou não, pouco importa. Os questionamentos devem ser outros. O que se deve querer saber é quais interesses este projeto vem atender e de que forma setores antes excluídos serão ainda mais marginalizados. Mas é importante também pontuar que a Universidade Nova em nada se aproxima do projeto nacional-desenvolvimentista burguês, aliás, vai exatamente contra ele, e por isso não pode passar de uma falsificação histórica colocar em Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira como as principais referências.

Isso significa que a Reforma Universitária terminou? Não exatamente. Ela provavelmente terá que ser repensada, mas não mudará muito sua linha. A Universidade Nova é completamente conciliatória com a Reforma Universitária porque não prevê mais recursos estatais para as universidades e aponta para o financiamento ainda maior das universidades particulares. Ainda mais: a Reforma Universitária atacava inevitavelmente alguns setores da burocracia acadêmica, que agora se sentem contemplados pela Universidade Nova. Esses setores viam na Reforma Universitária um ataque à sua autonomia de vender a universidade. Agora a Universidade Nova resolve esta questão, conferindo ainda mais poderes à burocracia, legitimando e provavelmente legalizando sua ação.

E é na defesa da autonomia que a Universidade Nova produz seu maior trunfo, tentando passar a idéia de que nasceu na base do diálogo com a comunidade acadêmica e é apresentado por porta-vozes eleitos democraticamente (os reitores) – ao contrário da Reforma Universitária que era uma imposição do MEC (e do FMI, do Banco Mundial, etc.). Na verdade eles – os reitores – só seguem o script, que poderia tranquilamente também ser seguido pelo MEC, se já não estivesse tão desgastado. O que já está nítido é que uma articulação entre os reitores e o governo se consolidou para atender a interesses do novo capital.

Mais do que isso. A Universidade Nova surge com uma estratégia inteligente de incorporar de forma corrompida as demandas dos movimentos que lutam pela educação. Apresenta-se, para camuflar seu caráter segregador, como a alternativa para o fim do vestibular e para o aumento do número das vagas. Sem muito esforço é fácil demonstrar que nada disso é verdade, mas como não há um movimento significativo de resistência a este projeto, e seus defensores têm cada vez mais acesso aos meios de comunicação de massa, tudo é colocado como verdade e consenso. O máximo que se conseguiu pensar para substituir o vestibular é o ENEM, exame que carrega consigo muito mais problemas do que a maioria dos vestibulares. Além do que, o verdadeiro vestibular passaria a acontecer na passagem dos Bacharelados Interdisciplinares (BI's) para os cursos especializados, que com o aumento da autonomia das burocracias acadêmicas, a seleção passaria a atender aos interesses de grupos particulares. Assim, a verdadeira universidade, a do segundo momento, devido ao gargalo criado entre os BI's e os próximos ciclos, pode passar a ter menos estudantes do que a atual, escolhidos propositadamente para reproduzirem mecanicamente o saber ou para produzirem conhecimento subordinado aos interesses do capital.

Por sua vez, só o apego da esquerda brasileira à universidade burguesa, inclusive do setor mais radical, pode explicar a tentativa, por parte dos defensores da Universidade Nova, de associar o projeto do novo capital às referências nacionais (Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira). É por esse apego aos ideais nacional-desenvolvimentistas que a esquerda brasileira sempre se mostrou incapaz de elaborar um projeto de universidade que tenha um papel importante na organização e na melhoria de vida dos trabalhadores. Assim, mesmo neste momento de reorganização, se restringem às palavras de ordem do tipo "mais verbas para educação" ou "pela universidade pública, gratuita e de qualidade", objetivos um tanto o quanto vazios para quem reivindica uma reorganização classista. Afinal, será que a burocracia acadêmica também não defende seu posto com a busca de mais verbas para educação? E o que significa "qualidade" neste novo contexto?

Para agravar a situação, já há indícios que este projeto pode ser aprovado por decreto, sem ter que enfrentar os debates que a Reforma Universitária encontrou pela frente. Mas enquanto isto pouco se tem dito de forma mais elaborada sobre os prováveis efeitos desta transformação das universidades. Nenhum dos grandes grupos da esquerda brasileira aponta para pretensão de expandir este debate para o conjunto da classe trabalhadora, chamando-a para construir uma contraproposta. Até agora tudo não passa de um debate feito dentro de um movimento estudantil dividido que não conta com o apoio significativo nem dos professores nem dos técnicos. A maior parte da oposição de esquerda usa o debate sobre os rumos da universidade como palanque para bater nos governos, mas não há uma preocupação real de construir uma universidade de caráter popular.

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Notas

[1] Já na década de 1990, idealizando a Universidade Estadual do Norte Fluminense, Darcy Ribeiro se colocou explicitamente contra a participação estudantil nas decisões dos rumos da universidade, mostrando que só parcialmente defendia a mesma universidade dos estudantes de córdoba de 1918 (ver texto A Universidade do Terceiro Milênio, republicado no livro O Brasil como problema, de 1995). Neste aspecto, e é importante frisar, nunca houve aliança com os estudantes, já que a UNE defendia a co-gestão entre os três setores (professores, estudantes e técnicos). A UNE sustentou esta bandeira até a posse do governo Lula, quando suas preocupações passaram a ser outras.

[2] Em 1964, logo após o Golpe, a UnB foi invadida por tropas do exército e da Polícia Militar. Anísio Teixeira, reitor na época, foi demitido do cargo e a reitora que o substituiu, Laerte Ramos de Carvalho, pediu a demissão imediata de 15 professores. Diante da situação, mais 233 professores pediram suas cartas, desfalcando a UnB de 80% dos seus quadros.

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Referências bibliográficas

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MARINI, Ruy Mauro. Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: Dialética da Dependência. SADER, Emir (org.). Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000.

Reitoria da Universidade Federal da Bahia. Projeto Universidade Nova. Disponível em: <http://www.universidadenova.ufba.br>. Acessado em: maio de 2007.

RIBEIRO, Darcy. A Universidade do Terceiro Milênio. In: RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1995.

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TRAGTENBERG, Maurício. A Delinqüência Acadêmica. In: Sobre educação, política e sindicalismo. TRAGTENBERG, Maurício. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

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UNE - União Nacional dos Estudantes. Oclae: muito além dos 40. Disponível em: <http://www.une.org.br/home3/opiniao/artigos/m_7646.html>. Acessado em: maio de 2007.


quarta-feira, 27 de junho de 2007

A Privadização do Templo

[Por Rafael Zanatto]

Meus caros, minhas caras,

Convido-vos a um pequeno exercício de reflexão.

Leiam o relato que vem nesta mensagem. Quem o escreveu foi um aluno da Unesp, um dos sete expulsos do campus de Franca há dois anos atrás, que agora estuda noutro campus. Mas antes de transcrever o relato, faço uma pergunta, a vocês e a mim mesmo. A censura interna nos grandes órgãos de comunicação e a deturpação sistemática dos acontecimentos dever-se-á apenas à necessidade de enganar que caracteriza as elites dominantes ou dever-se-á também à necessidade sentida por muitas pessoas de serem enganadas para justificarem a si mesmas a passividade e a indiferença em que preferem viver?

Cordialmente,

João Bernardo


A universidade pública há muito, se não sempre, tem deixado a desejar em suas responsabilidades a que a concentração de saber a obriga. A difusão do conhecimento para campos menos restritos da sociedade têm-se demonstrado ineficaz devido ao descompasso entre a real responsabilidade que o termo universal emprega e a prática universitária. Cada vez mais, a universidade se transforma em uma vanguarda estritamente pensante voltada aos valores mercadológicos das idéias. As produções acadêmicas, voltadas ao mercado, vêm a reafirmar um processo em andamento há algum tempo e a cada medida pública tomada têm-se a percepção de que o esboço traçado pelos trâmites burocráticos cada vez mais se concretiza. A privatização da universidade pública está em um processo desenfreado de concretização.

Esse processo não é atual. Historicamente, a intelectualidade se originou bem longe dos antros acadêmicos. No início, a produção do conhecimento humano se desenvolvia nos guetos. Os intelectuais viviam em bairros repletos de quartos de aluguel baratos, caminhavam pelas ruas cercadas de restaurantes modestos e cafés em que o calor do debate se desenvolvia livre das normas que o capital impõe sobre as produções acadêmicas de hoje em dia. O saber se desenvolvia na vida inconstante. A instabilidade proporcionava a constante renovação intelectual daquelas tão brilhantes e florescentes gerações que faziam do álcool, da música e das demais substâncias que incandesciam a criatividade humana, impulsionando a expansão da percepção, a criação do novo. O fervor intelectual de antes, que se alastrava livremente pelas ruas contaminando as pessoas com a sede de conhecimento, supria a necessidade inflexiva do âmago humano. Hoje, infelizmente a chama da produção do conhecimento tende cada vez mais a desaparecer.

A universidade, abastecida pela capitalização de alguns intelectuais envelhecidos, cansados da boêmia e da instabilidade de suas vidas, trocaram os guetos pelos campi universitários, do qual passaram a ministrar aulas em que transmitiam seu conhecimento adquirido através de uma vida de revezes a jovens sem a inconstância em que fora forjada a lâmina que despe os valores morais, condição necessária para otimizar a produção do conhecimento. Não há aprendizado que não seja realmente aprendido na prática. A prática determina uma ótica crítica. O efeito é terrível. Grandes quantidades de jovens apáticos entram e saem da universidade da mesma maneira, acostumados com o mínimo. Eles não compartilham mais da sede, da inconstância, da reformulação do pensamento. E se não há reformulação ou desconstrução, a causa exposta em regressão, expressa o efeito meramente reprodutivo do conhecimento. Há hoje, entre os habitantes do cofre do conhecimento, um consenso. As facilidades que a reprodução permite compassa perfeitamente com a tecnização por qual passa a humanidade. O capital cada vez mais treina máquinas biológicas necessárias para a movimentação de suas engrenagens. A universidade, repleta por essa geração de professores acadêmicos, discípulos dos intelectuais do passado, não mais fazem valer o costume de o discípulo superar o mestre.

A universidade no atual momento, já sepulta em seus corredores o último fiasco do novo que resta de seu passado. Pelas ruas, não mais se ouve o grito dos intelectuais, não mais se ouve canções subversivas que no início emanavam da universidade na década de 60. O conhecimento cada vez mais se dissipa na especialização que o ideário mercadológico das produções de teses exige. Mas, como essas palavras jogadas e dispostas em ordem estritamente irracional podem ser vinculadas às medidas totalizadoras que o governo Serra implementou, com o estabelecimento das secretarias de ensino superior?

Com o estabelecimento das secretarias, toda a verba destinada às universidades públicas paulistas (USP, Unesp e Unicamp) passariam antes por uma comissão fiscal, que avaliaria a viabilidade dos projetos que fossem encaminhados a esse departamento. Alguns talvez perguntem: qual o significado disso tudo? O que mudaria na vida universitária? Poderia aqui expor uma grande gama de micro projetos e novas articulações burocráticas por qual seria fácil adaptar novos mecanismos de corrupção, além dos atuais existentes, mas procurarei me ater às conseqüências diretas.

A implantação das secretarias significaria a perda da autonomia que a burocracia universitária tem em gastar a verba pública que lhe já é escassa. As verbas das universidades públicas foram mantidas estáticas, não acompanharam simultaneamente as políticas de expansão de cursos superiores que o governo anterior e o atual vêm desenvolvendo. Com a expansão dos cursos e a manutenção da verba em um mesmo percentual, duas conseqüências comprometedoras recaem sobre a organização universitária. Com a escassez da verba, alguns cursos superiores que favorecem diretamente a multiplicação do capital, como as áreas voltadas à tecnologia, recorrem ao capital externo, sobrevivendo dessa maneira, capitalizando diretamente a produção do conhecimento. Já outras áreas do pensamento, como as ciências humanas, e quando digo humanas, me refiro às disciplinas voltadas ao real significado que o termo "humano" demanda, e assim, conceituando, excluo dessa definição as ciências jurídicas, por entender que a preservação do "direito de exploração" de um indivíduo sobre outro não compactuam com a minha real intenção de lapidar um termo adequado que defina as ciências "humanas". Essas ciências são condenadas ao sucateamento quase que imediato, se reconhecermos que nessa área do conhecimento, o retorno de capital ao mercado se faz paulatino, em contradição com o retorno de capital quase que instantâneo nas áreas mercadológicas. A privatização da universidade está em um processo desenfreado de finalização, e tais medidas governamentais só materializam tais afirmativas.

Aos estudantes, a perda de autonomia das universidades dificultaria ainda mais as lutas estudantis, devido à construção de outra barreira intransponível na máquina burocrática. Algumas exigências, por exemplo, moradia estudantil, bolsas de apoio, refeições a preços acessíveis, professores renovadores, aproximações com os ambientes sociais e as demais exigências que ecoam silenciosamente nas mentes intranqüilas dos estudantes, não poderiam ser exigidas diretamente as tradicionais ordens burocráticas locais, as decisões passariam a ser decididas centralmente, longe dos focos a onde seriam empregados o capital. Em decorrência, há um entrave nas lutas estudantis, tanto logística como burocraticamente.

Da ineficácia da qual é intrínseca à implantação das secretarias, nos resta apontar mais alguns aspectos que comprometem, não apenas em longo prazo, mas o cotidiano das unidades de ensino superior. Algumas medidas administrativas vinculadas ao propósito de obras emergenciais ou expansão infra-estrutural necessária para o andamento normal das atividades acadêmicas seriam submetidas à secretaria que avaliaria a real necessidade do projeto. Mas como desvincular localmente decisões que cabem senão à localidade, às unidades em si! Tal ignorância me parece assombrosa. Mas esta é a questão, não há ignorância, há um desejo sádico incrustado na superfície desse decreto inescrupuloso e vil. Um desejo que só é explicado pelo egoísmo tão particular dos políticos, em seu desejo incessante de controlar e julgar.

O que está em jogo hoje não é apenas mais um passo ao controle desenfreado do autoritarismo empreendido nessa questão pelo estado, mas a finalização de um processo que já está em andamento há anos, a privatização está em fase de consolidação. Resta aos resquícios da intelectualidade resistir a tais medidas. Não abandonem o templo, professores acadêmicos! Qualquer consenso há médio prazo, será prejudicial à manutenção da universidade como bem público. Não há como haver acordo, e os estudantes da USP, Unesp e Unicamp estão cientes de que um desfecho que não seja o recuo estatal, sepultará o que resta do podre cadáver que se converteu a universidade. A luta cada vez mais se expande. As unidades satélites das universidades estaduais se colocam em greve sob tais exigências: Não à burocratização. Não ao sucateamento. Não à capitalização do conhecimento! Não ao partidarismo. Pela liberdade incondicional, pela luta, pelo futuro.

domingo, 17 de junho de 2007

ADMIRÁVEL UNIVERSIDADE NOVA

[Henrique Souza – Militante do SAJU e d@ Comuna]

Esse pequeno conto se passa numa universidade num lugar distante de um futuro de data imprecisa, mas de certa forma também se passa exatamente aqui e agora. Alertamos que não se trata de exercício de previsão, mas, antes disso, uma esperança de que não se trate de uma previsão. A cena ocorre mais especificamente na sala de aula do futuro, um auditório, cujos assentos, por uma questão de racionamento de espaço, estão empilhados uns em cima dos outros em forma de um estoque de sardinhas enlatadas. Trata-se de uma aula de História das Idéias Ultrapassadas, em vias de ser banida porque na universidade do futuro não se aprecia o estudo da História. A rigor, como a universidade do futuro é internacional e, portanto, padronizada, todas as aulas são ministradas em inglês, o que nos demandou um grande esforço de tradução, já que nem todos os termos do inglês do futuro têm correspondentes no português atual. Aliás, o português é umas das milhares de línguas e dialetos que entraram em extinção. Na sala, centenas de jovens estão em silêncio e imóveis, olhando fixamente para a imagem do que outrora costumava ser conhecido como professor:

- Bem, continuando, nesse holograma podemos ver uma peça que data do século XIX, conhecida atualmente como “Universidade Velha”, um modelo obsoleto de ensino superior caracterizado pelos altos custos, baixa produtividade e ineficiência na formatação dos depositários fabricados, cujos últimos resquícios datam do início do século XXI, ou, para ser mais preciso, usando o sistema de contagem em vigor, do ano 150 d.F. (depois de Ford). Na verdade, naquela época os depositários como vocês eram chamados de “estudantes”, mas a denominação padrão foi modificada desde que a Universidade percebeu a importância de oficializar o modelo de Educação Bancária, conceito que foi muito bem desenvolvido por um grande teórico chamado Paulo Freire, que estudou a Educação Bancária com o objetivo de destruí-la, mas o sistema, obviamente, hoje se aproveita de seus estudos para desenvolvê-la cada vez mais. Como eu ia dizendo, há muito tempo que esse modelo de “Universidade Velha” foi substituído pela “Universidade Nova”, que é a que vocês têm o privilégio de freqüentar agora, uma universidade sintonizada com a era da sociedade do conhecimento e com a internacionalização proveniente do processo de globalização.

Durante a explicação, no entanto, uma garota baixinha chamada Mafalda se inquietava, lá no fundo, achando que tinha alguma coisa errada naquela história toda. Sem saber como agir, teve um impulso e tomou uma atitude impensada: fez uma pergunta.

- Mas, senhor depositante, a imagem dessa “universidade velha” apresentada no holograma é praticamente igual à “Universidade Nova” que nós estamos agora, existe alguma diferença entre as duas?

- Minha cara... Herr, deixe-me ver... Minha cara MX-7892, em primeiro lugar, você bem sabe que numa turma com 500 depositários como a que estamos não dá para todos ficarem tirando suas dúvidas pessoais, portanto questionamentos como o seu são severamente desestimuladas por representarem um gesto de egoísmo e prejudicarem o resto da turma. Sua nota na disciplina acaba de ficar 10 dólares mais cara! A propósito, ao fim da aula eu quero que você vá ao setor médico para examinar se você tem tomado sua dose obrigatória de tranqüilizante. Mas para não ser chamado de anti-didático, vou responder à sua questão. Em termos de estrutura física a “Universidade Nova” é realmente quase igual à “Universidade Velha”, exceto pelo fato de que atualmente a Bolha Universitária, antigamente chamada de Campus, é muito mais segura: os muros são muito mais altos, as cercas foram eletrificadas, os vidros são blindados e, claro, há câmeras por toda a parte para monitorar a segurança de vocês. Mas na verdade não é só na aparência física que existe essa semelhança: tanto a Universidade Velha quanto a Universidade Nova têm exatamente o mesmo objetivo, transformar a perigosa energia potencialmente destrutiva, criativa e revolucionária da juventude em força de trabalho para garantir a estabilidade social. Afinal, qual o princípio fundamental da sociedade civilizada?

- NÃO HÁ CIVILIZAÇÃO SEM ESTABILIDADE SOCIAL. – Repete três vezes a turma, em coro.

- Muito bem! Em última instância, a finalidade da universidade e da educação como um todo é condicionar vocês, e como disse o visionário Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo, o fim de todo o condicionamento é fazer as pessoas apreciarem o destino social a que não podem escapar. Por isso, em essência a universidade teve que se renovar para manter tudo igual. Aliás isso é a regra no capitalismo, as empresas têm sempre que lançar novos produtos no mercado, ou os mesmos produtos com uma nova roupagem, para se manterem competitivas. Nada mais lógico que as universidades seguirem o mesmo modelo. Como disse o Grande Ford: “Viva o Novo”!

- Graças a Ford! – os depositários repetem, fazendo o sinal do T.

- Então, podemos analisar a inovação trazida pela “Universidade Nova” sob dois aspectos. Por um lado, foi um grande golpe de publicidade, não apenas pelo impacto da marca nova, mas principalmente para aliviar as pressões sociais que, àquela altura, exigiam que a universidade fosse utilizada como instrumento de inclusão social e que as estruturas acadêmicas fossem reformuladas para esse fim. Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho também exigia uma nova formação acadêmica, pois a flexibilização do trabalho exigia um trabalhador mais flexível, ou seja, um grande exército de reserva de mão de obra barata com uma formação mais generalista, para assim reduzir ao mesmo tempo a quantidade de postos de trabalho e o poder de barganha do trabalhador e, dessa forma, os salários. Assim, surgiu o chamado ciclo básico, graças ao qual vocês têm a honra de assistir a essa aula nesse auditório, ao mesmo tempo em que estamos sendo transmitidos ao vivo para outras 80 turmas espalhadas pelo país. Isso sim é um exemplo de produtividade! Ao mesmo tempo, deveria haver uma formação de excelência restrita representada pelos Mestrados e Doutorados para a formação da elite dominante. E assim surgiu a “Universidade Nova”! Não era democratização do acesso o que os rebeldes da época pediam? Pois nós democratizamos não só o acesso, democratizamos a subserviência, o democratizamos o pensamento único, democratizamos o desemprego, que, como vocês sabem, são fatores essenciais para o acúmulo de capital e para a estabilidade social. Não gritavam tanto contra o autoritarismo? Pois nós lhes demos liberdade, mas a liberdade pacífica de colaborarem com o sistema!

- Mas, senhor depositário, na época esses estudantes rebeldes de que o senhor fala não se opuseram também à Universidade Nova? – Mafalda não conseguiu se controlar, já se arrependendo de não ter tomado a sua dose obrigatória de entorpecente.

- MX-7892, esses seus questionamentos inquietam a turma, eles despertam a praga da curiosidade! Acabo de acrescentar mais 100 dólares de débito à sua nota! Mas mais uma vez, vou ser generoso e responder a sua pergunta. Os “estudantes rebeldes” daquela época bem podiam ter derrubado o Universidade Nova, sim, podiam até ter ido além, podiam ter construído uma heresia como uma universidade verdadeiramente popular se tivessem lutado, mas felizmente, nós os paralisamos com a mais eficiente das armas: oferecemo-lhes o poder. Cargos, financiamento, representatividade nos conselhos deliberativos, enfim, bastou seduzi-los com a disputa institucional que eles não faziam nada mais que disputar eleições e brigar por cargos. Não é a toa que esses mesmos estudantes rebeldes hoje formam a elite política e econômica que nos permitem desfrutar da Universidade Nova...

Mafalda já não conseguia mais prestar atenção. Ainda quis dizer alguma coisa, mas se segurou. Não sabia de onde tiraria mais dinheiro para ser aprovada, já que as multas extrapolavam em muito o valor da sua bolsa-permanecer. Sentia dentro do peito uma sensação estranha, algo que não sabia explicar de tão absurdo que era, como uma vontade de questionar, de gritar, de resistir, de protestar... Mas era como se fosse uma vontade fora de época, o tempo que havia para aquilo ser feito era o tempo mítico dos “estudantes rebeldes” ao qual o senhor depositário se referia... Mas aquele tempo passou, aquela geração tinha se calado, e Mafalda também se calou. Discretamente, escreveu em seu caderno: “O novo já nasce velho...”

quinta-feira, 17 de maio de 2007

ADM: Vanguarda da Privatização

[Por Fabrício Moreira – Militante do DAADM e d@ COMUNA]

A Escola de Administração da UFBA é um dos locais onde os processos de privatização, desresponsabilização e uso do espaço acadêmico como legitimação das atuais relações de poder é um dos mais avançados no Brasil. O discurso da legitimação das atuais relações sociais é tão forte, que a ênfase da faculdade é na gestão social, no desenvolvimento local e em áreas afins, afinal, eles querem nos ensinar a conviver harmoniosamente com o capitalismo. Até os estudantes que querem uma formação mais mercadológica são prejudicados, e os estudantes que querem uma formação crítica são atropelados com o ensino voltado para aprendermos a conviver com o capital e convencer os outros disso. Eles nos ensinam a ser gestores de relações sociais conflituosas para manutenção do status quo.

Só que as questões concretas da mercantilização estão ultrapassando todos os níveis cabíveis, vejamos alguns exemplos:

- Estão tirando as turmas de graduação do prédio e jogando para outras unidades, porque no lugar estão entrando cursos pagos;

- Muitos dos professores doutores SE RECUSAM a dar aula na graduação, e muitos do que o fazem é com absoluto descompromisso, com uma qualidade de ensino péssima;

- Estamos fisicamente perdendo espaço para uma grande variedade de projetos na área de consultoria, com financiamento público ou privado. Estes projetos tomam as salas, equipamentos, o tempo dos professores, etc.;

- Existem inúmeras consultorias sendo realizadas para empresas privadas e para o próprio estado;

- Querem fortalecer o Ensino à Distância e as novas tecnologias educacionais. Estão em todos os projetos nessa área: universidade corporativa, especialização à distância, mestrado à distância e agora querem começar também a graduação à distância. A fala de uma das professoras na reunião: "Daqui há cinco anos aula presencial será coisa do passado, não vai existir mais, será relíquia. Vocês vão poder contar aos seus filhos que eram do tempo em que viam o professor na sala. Se acostumem";

- A Escola faz várias pesquisas, mas os estudantes da graduação praticamente não participam delas, e os projetos de extensão da Escola são TODOS cursos pagos ou consultorias, apenas há 1 mês atrás que começou um projeto de extensão em comunidade que é gratuito, não sabemos se vai sobreviver nos próximos semestres;

- Hoje existem mais alunos de cursos pagos (especialização, mestrado e extensão), do que alunos de graduação, mestrado acadêmico e doutorado. Hoje existem mais professores atuando na Escola nestes cursos e projetos do que professores concursados;

- A qualidade de ensino é terrível: professores faltam muitas aulas, excesso de professores substitutos, provas ridículas. A monografia é uma grande farsa. Aliás, não existe defesa de monografia e muitas delas nem são lidas e avaliadas por pelo menos três professores;

- Não existe política de estágio, nem para complementar a formação com campos de prática nem para quem precisa trabalhar para se manter na faculdade. Estamos trabalhando em call-centers ou como vendedores em loja. Apenas os estudantes mais ricos, que podem estudar inglês, espanhol, fazer intercâmbio, trabalhar voluntariamente em outras consultorias pra ganhar currículo, etc., conseguem nos últimos semestres do curso virar estagiário ou trainee de grandes empresas. Ainda assim trabalham de segunda a sábado e no mínimo 8h por dia.

Enfim, são muitos problemas. Mas percebemos que toda a agenda do capital para a universidade pública está em andamento aqui: fundações de direito privado (são duas na Escola de Administração!), ensino à distância, cursos pagos, consultorias e projetos para captação de recursos no mercado, precarização do ensino, e PRINCIPALMENTE: resgatar e reforçar o papel da Universidade enquanto reprodutora das atuais relações de poder, pois ainda que forme mão-de-obra semi-qualificada seu papel central é produzir conhecimento para as classes dominantes, reproduzindo a ideologia do status quo.


O Projeto Administração Experimental e a Universidade Nova

Como uma escola que segue todos os ditames da "modernidade", é claro que a EAUFBA não ia ficar "por fora" dessa. Aliás, temos enfrentado este modelo de bacharelados interdisciplinares e inserção na agenda internacional do mercado de ensino superior há mais de 3 anos. Quando da retomada das discussões internas sobre o currículo, já havia um grupo forte de professores defendendo que nos adaptemos plenamente no modelo do Protocolo de Bolonha (base real que a Universidade Nova descaradamente copia). Já defendiam também ensino à distância, turmas de 300 alunos, etc. Os estudantes de Administração conseguiram barrar aquilo naquela época, mas os professores aprovaram o infame projeto "ADMINISTRAÇÃO EXPERIMENTAL".

Este projeto, fundamentalmente, significa testar a metodologia do bacharelado interdisciplinar nos moldes do Protocolo de Bolonha, usando toda a "moderna tecnologia educacional" já nos estudantes de graduação. Pegaram as turmas dos outros cursos que tem em seus currículos a disciplina Introdução à Administração, e juntaram em turmas de até 150 alunos (isso mesmo, 150 alunos!), dizendo que isso era "interdisciplinariedade". Detalhe: os professores disseram que a turma só não seria maior porque essa é a capacidade máxima do auditório. A primeira aula-show da semana é ministrada por um professor, e a segunda aula da semana é dividida em duas turmas de 70 a 80 alunos. Quem dá aula nessa segunda turma? Os estudantes do mestrado que acabaram de sair da graduação e ingressaram na pós!

É essa a grande "democratização do acesso" que a Universidade Nova nos apresenta: turmas com centenas de estudantes, qualidade do ensino extremamente precária, sem aumento de recursos para universidade pública, sem contratação de professores e liberando os professores que mais fazem projetos público-privados para pesquisarem temas interessantes aos grupos hegemônicos (pois conseguem financiamento farto). Afinal, você acha que estes professores dão aula? Que nada. Além de massificar a quantidade de alunos, colocam professores substitutos e monitores mestrandos (que não ganham por isso) para ministrar as aula. Precarizando ainda mais a figura do professor substituto (que deveria ser excepcional, mas já virou recorrente).

E a qualidade de ensino fica aonde mesmo? Ah, mas o projeto diz que somos interdisciplinares (150 estudantes de vários cursos assistindo uma aula-show, estilo cursinho pré-vestibular), que temos qualidade (professores substitutos e alunos de primeiro semestre do mestrado) e que há democratização do acesso (aumenta o número de vagas por as turmas terão centenas de estudantes).

Mas quando começamos a questionar os professores eles nos disseram que isso não tem nada haver com a Universidade Nova, que é tudo coisa inventada pela cabeça de aluno. Eles esqueceram que os Estudantes de Administração têm consciência de sua história de lutas. Quando os professores (não todos, mas a maioria) propuseram este projeto, os estudantes estavam presentes na reunião. Todos ouviram os professores declararem com orgulho que aquele modelo era o teste para a futura aplicação em larga escola (nacionalmente) do modelo de Bacharelado Interdisciplinar europeu, que agora é retomada na Universidade Nova. Eles, ao se auto-declararem vanguarda da privatização, esqueceram que os estudantes de ADM souberamaçdade privatizada,..

s uma vez! da reunião que aconteceu no inicio do mês de Maio às escondidas com o ministro da educação, que esteve na Escola de Administração da UFBA para conhecer o “caso de sucesso”, e que seria replicada já no próximo semestre em toda a UFBA, quiçá no Brasil.

Eles privatizam, nós nos organizamos!

Mas nós estudantes não somos apenas um elemento passivo, “produto” das aulas e do currículo. Somos seres pensantes, ativos, inseridos no mundo. Muitos lutaram e inclusive morreram na época da ditadura para que hoje tenhamos o direito de contestar o que a Universidade nos oferece. Se a intensidade da privatização daqui é forte, nós estudantes temos que ser ainda mais fortes e unidos para barrar esse processo, e no próprio processo de luta construir uma outra universidade, que atenda não apenas as nossas necessidades, mas da sociedade em que está inserida. E não é sociedade em abstrato, porque assim ela não existe, mas os grupos historicamente excluídos.

Hoje a universidade caminha para atender mais plenamente a necessidade dos grupos dominantes (os empresários de diferentes ramos). É vista inclusive por muitos estudantes como espaço necessário para se qualificar para o mercado de trabalho. Essa outra Universidade que propomos deve ser bem mais do que reproduzir os interesses dos grupos de poder. Estamos vendo historicamente os resultados da Universidade brasileira que sempre repetiu receitas “colonizadas” e elitizada, que simplesmente visavam a modernidade de forma conservadora, dizendo que deste modo seria mais benéfico para toda a população. Já se passaram 500 anos nesta lógica.

Dizemos “não”. Agora é a hora de rediscutir a Universidade a partir dos interesses e necessidades concretos da população. E não das classes dominantes mais uma vez, mas da imensa maioria da população que trabalha e com este trabalho mantêm a própria universidade, dos que sofrem com as desigualdades, da falida classe média hoje em processo de favelização. A partir de problemas concretos: desigualdade, fome, violência, falta de trabalho, emprego precarizado e sub-qualifcado, etc. Uma Universidade que se construa a partir disto, da nossa realidade concreta, daí o lema, por uma Universidade Popular.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

A Delinqüência Acadêmica*

[por Maurício Tragtenberg]


O tema é amplo: a relação entre a dominação e o saber, a relação entre o intelectual e a universidade como instituição dominante ligada à dominação, a universidade antipovo.

A universidade está em crise. Isto ocorre porque a sociedade está em crise; através da crise da universidade é que os jovens funcionam detectando as contradições profundas do social, refletidas na universidade. A universidade não é algo tão essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para obscurecer esses fatores ela desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber “objetivo”, acima das contradições sociais.

No século passado, período do capitalismo liberal, ela procurava formar um tipo de “homem” que se caracterizava por um comportamento autônomo, exigido por suas funções sociais: era a universidade liberal humanista e mandarinesca. Hoje, ela forma a mão-de-obra destinada a manter nas fábricas o despotismo do capital; nos institutos de pesquisa, cria aqueles que deformam os dados econômicos em detrimento dos assalariados; nas suas escolas de direito forma os aplicadores da legislação de exceção; nas escolas de medicina, aqueles que irão convertê-la numa medicina do capital ou utilizá-la repressivamente contra os deserdados do sistema. Em suma, trata-se de “um complô de belas almas” recheadas de títulos acadêmicos, de um doutorismo substituindo o bacharelismo, de uma nova pedantocracia, da produção de um saber a serviço do poder, seja ele de que espécie for.

Na instância das faculdades de educação, forma-se o planejador tecnocrata a quem importa discutir os meios sem discutir os fins da educação, confeccionar reformas estruturais que na realidade são verdadeiras “restaurações”. Formando o professor-policial, aquele que supervaloriza o sistema de exames, a avaliação rígida do aluno, o conformismo ante o saber professoral. A pretensa criação do conhecimento é substituída pelo controle sobre o parco conhecimento produzido pelas nossas universidades, o controle do meio transforma-se em fim, e o “campus” universitário cada vez mais parece um universo concentracionário que reúne aqueles que se originam da classe alta e média, enquanto professores, e os alunos da mesma extração social, como “herdeiros” potenciais do poder através de um saber minguado, atestado por um diploma.

A universidade classista se mantém através do poder exercido pela seleção dos estudantes e pelos mecanismos de nomeação de professores. Na universidade mandarinal do século passado o professor cumpria a função de “cão de guarda” do sistema: produtor e reprodutor da ideologia dominante, chefe de disciplina do estudante. Cabia à sua função professoral, acima de tudo, inculcar as normas de passividade, subserviência e docilidade, através da repressão pedagógica, formando a mão-de-obra para um sistema fundado na desigualdade social, a qual acreditava legitimar-se através da desigualdade de rendimento escolar; enfim, onde a escola “escolhia” pedagogicamente os “escolhidos” socialmente.

A transformação do professor de “cão de guarda” em “cão pastor” acompanha a passagem da universidade pretensamente humanista e mandarinesca à universidade tecnocrática, onde os critérios lucrativos da empresa privada, funcionarão para a formação das fornadas de “colarinhos brancos” rumo às usinas, escritórios e dependências ministeriais. É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário.

A universidade dominante reproduz-se mesmo através dos “cursos críticos”, em que o juízo professoral aparece hegemônico ante os dominados: os estudantes. Isso se realiza através de um processo que chamarei de “contaminação”. O curso catedrático e dogmático transforma-se num curso magisterial e crítico; a crítica ideológica é feita nos chamados “cursos críticos”, que desempenham a função de um tranqüilizante no meio universitário. Essa apropriação da crítica pelo mandarinato universitário, mantido o sistema de exames, a conformidade ao programa e o controle da docilidade do estudante como alvos básicos, constitui-se numa farsa, numa fábrica de boa consciência e delinqüência acadêmica, daqueles que trocam o poder da razão pela razão do poder. Por isso é necessário realizar a crítica da crítica-crítica, destruir a apropriação da crítica pelo mandarinato acadêmico. Watson demonstrou como, nas ciências humanas, as pesquisas em química molecular estão impregnadas de ideologia. Não se trata de discutir a apropriação burguesa do saber ou não-burguesa do saber, mas sim a destruição do “saber institucionalizado”, do “saber burocratizado” como único “legítimo”. A apropriação universitária (atual) do conhecimento é a concepção capitalista de saber, onde ele se constitui em capital e toma a forma nos hábitos universitários.

A universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma. Esse modo de produção determina o tipo de formação através das transformações introduzidas na escola, que coloca em relação mestres e estudantes. O mestre possui um saber inacabado e o aluno uma ignorância transitória, não há saber absoluto nem ignorância absoluta. A relação de saber não institui a diferença entre aluno e professor, a separação entre aluno e professor opera-se através de uma relação de poder simbolizada pelo sistema de exames – “esse batismo burocrático do saber”. O exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de “exclusão” que possui a empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela “exclui” o candidato. Para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada “informação” que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores. Os valores de submissão e conformismo, a cada instante exibidos pelos comportamentos dos professores, já constituem um sistema ideológico. Mas, em que consiste a delinqüência acadêmica?

A “delinqüência acadêmica” aparece em nossa época longe de seguir os ditames de Kant: “Ouse conhecer.” Se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época é fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica. Os filósofos da revolução francesa se autodenominavam de “intelectuais” e não de “acadêmicos”. Isso ocorria porque a universidade mostrara-se hostil ao pensamento crítico avançado. Pela mesma razão, o projeto de Jefferson para a Universidade de Virgínia, concebida para produção de um pensamento independente da Igreja e do Estado (de caráter crítico), fora substituído por uma “universidade que mascarava a usurpação e monopólio da riqueza, do poder”. Isso levou os estudantes da época a realizarem programas extracurriculares, onde Emerson fazia-se ouvir, já que o obscurantismo da época impedia a entrada nos prédios universitários, pois contrariavam a Igreja, o Estado e as grandes “corporações”, a que alguns intelectuais cooptados pretendem que tenham uma “alma”. [1]

Em nome do “atendimento à comunidade”, “serviço público”, a universidade tende cada vez mais à adaptação indiscriminada a quaisquer pesquisas a serviço dos interesses econômicos hegemônicos; nesse andar, a universidade brasileira oferecerá disciplinas como as existentes na metrópole (EUA): cursos de escotismo, defesa contra incêndios, economia doméstica e datilografia em nível de secretariado, pois já existe isso em Cornell, Wisconson e outros estabelecimentos legitimados. O conflito entre o técnico e o humanismo acaba em compromisso, a universidade brasileira se prepara para ser uma “multiversidade”, isto é, ensina tudo aquilo que o aluno possa pagar. A universidade, vista como prestadora de serviços, corre o risco de enquadrar-se numa “agência de poder”, especialmente após 68, com a Operação Rondon e sua aparente democratização, só nas vagas; funciona como tranqüilidade social. O assistencialismo universitário não resolve o problema da maioria da população brasileira: o problema da terra.

A universidade brasileira, nos últimos 15 anos, preparou técnicos que funcionaram como juízes e promotores, aplicando a Lei de Segurança Nacional, médicos que assinavam atestados de óbito mentirosos, zelosos professores de Educação Moral e Cívica garantindo a hegemonia da ideologia da “segurança nacional” codificada no Pentágono.

O problema significativo a ser colocado é o nível de responsabilidade social dos professores e pesquisadores universitários. A não preocupação com as finalidades sociais do conhecimento produzido se constitui em fator de “delinqüência acadêmica” ou da “traição do intelectual”. Em nome do “serviço à comunidade”, a intelectualidade universitária se tornou cúmplice do genocídio, espionagem, engano e todo tipo de corrupção dominante, quando domina a “razão do Estado” em detrimento do povo. Isso vale para aqueles que aperfeiçoam secretamente armas nucleares (M.I.T.), armas químico-biológicas (Universidade da Califórnia, Berkeley), pensadores inseridos na Rand Corporation, como aqueles que, na qualidade de intelectuais com diploma acreditativo, funcionam na censura, na aplicação da computação com fins repressivos em nosso país. Uma universidade que produz pesquisas ou cursos a quem é apto a pagá-los perde o senso da discriminação ética e da finalidade social de sua produção – é uma multiversidade que se vende no mercado ao primeiro comprador, sem averiguar o fim da encomenda, isso coberto pela ideologia da neutralidade do conhecimento e seu produto.

Já na década de 30, Frederic Lilge [2] acusava a tradição universitária alemã da neutralidade acadêmica de permitir aos universitários alemães a felicidade de um emprego permanente, escondendo a si próprios a futilidade de suas vidas e seu trabalho. Em nome da “segurança nacional”, o intelectual acadêmico despe-se de qualquer responsabilidade social quanto ao seu papel profissional, a política de “panelas” acadêmicas de corredor universitário e a publicação a qualquer preço de um texto qualquer se constituem no metro para medir o sucesso universitário. Nesse universo não cabe uma simples pergunta: o conhecimento a quem e para que serve? Enquanto este encontro de educadores, sob o signo de Paulo Freire, enfatiza a responsabilidade social do educador, da educação não confundida com inculcação, a maioria dos congressos acadêmicos serve de “mercado humano”, onde entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem preenchidos, parecidos aos encontros entre gerentes de hotel, em que se trocam informações sobre inovações técnicas, revê-se velhos amigos e se estabelecem contatos comerciais.

Estritamente, o mundo da realidade concreta e sempre muito generoso com o acadêmico, pois o título acadêmico torna-se o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. O problema da responsabilidade social é escamoteado, a ideologia do acadêmico é não ter nenhuma ideologia, faz fé de apolítico, isto é, serve à política do poder.

Diferentemente, constitui, um legado da filosofia racionalista do século XVIII, uma característica do “verdadeiro” conhecimento o exercício da cidadania do soberano direito de crítica questionando a autoridade, os privilégios e a tradição. O “serviço público” prestado por estes filósofos não consistia na aceitação indiscriminada de qualquer projeto, fosse destinado à melhora de colheitas, ao aperfeiçoamento do genocídio de grupos indígenas a pretexto de “emancipação” ou política de arrocho salarial que converteram o Brasil no detentor do triste “record” de primeiro país no mundo em acidentes de trabalho. Eis que a propaganda pela segurança no trabalho emitida pelas agências oficiais não substitui o aumento salarial.

O pensamento está fundamentalmente ligado à ação. Bergson sublinhava no início do século a necessidade do homem agir como homem de pensamento e pensar como homem de ação. A separação entre “fazer” e “pensar” se constitui numa das doenças que caracterizam a delinqüência acadêmica – a análise e discussão dos problemas relevantes do país constitui um ato político, constitui uma forma de ação, inerente à responsabilidade social do intelectual. A valorização do que seja um homem culto está estritamente vinculada ao seu valor na defesa de valores essenciais de cidadania, ao seu exemplo revelado não pelo seu discurso, mas por sua existência, por sua ação.

Ao analisar a “crise de consciência” dos intelectuais norte-americanos que deram o aval da “escalada” no Vietnã, Horowitz notara que a disposição que eles revelaram no planejamento do genocídio estava vinculada à sua formação, à sua capacidade de discutir meios sem nunca questionar os fins, a transformar os problemas políticos em problemas técnicos, a desprezar a consulta política, preferindo as soluções de gabinete, consumando o que definiríamos como a traição dos intelectuais. É aqui onde a indignidade do intelectual substitui a dignidade da inteligência.

Nenhum preceito ético pode substituir a prática social, a prática pedagógica.

A delinqüência acadêmica se caracteriza pela existência de estruturas de ensino onde os meios (técnicas) se tornam os fins, os fins formativos são esquecidos; a criação do conhecimento e sua reprodução cede lugar ao controle burocrático de sua produção como suprema virtude, onde “administrar” aparece como sinônimo de vigiar e punir – o professor é controlado mediante os critérios visíveis e invisíveis de nomeação; o aluno, mediante os critérios visíveis e invisíveis de exame. Isso resulta em escolas que se constituem em depósitos de alunos, como diria Lima Barreto em “Cemitério de Vivos”.

A alternativa é a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários no meio universitário, que oponham-se à esclerose burocrática da instituição.

A autogestão pedagógica teria o mérito de devolver à universidade um sentido de existência, qual seja: a definição de um aprendizado fundado numa motivação participativa e não no decorar determinados “clichês”, repetidos semestralmente nas provas que nada provam, nos exames que nada examina, mesmo porque o aluno sai da universidade com a sensação de estar mais velho, com um dado a mais: o diploma acreditativo que em si perde valor na medida em que perde sua raridade.

A participação discente não constitui um remédio mágico aos males acima apontados, porém a experiência demonstrou que a simples presença discente em colegiados é fator de sua moralização.

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* Texto apresentado no I Seminário de Educação Brasileira, realizado em 1978, em Campinas-SP. Publicado em: TRAGTENBERG, M. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. Sã Paulo: Editores Associados; Cortez, 1990, 2ª ed. (Coleção teoria e práticas sociais, vol 1)
[1] Kaysen pretende atribuir uma “alma”à corporação multinacional; esta parece não preocupar-se com tal esforço construtivo do intelectual.
[2] Frederic LILGE, The Abuse of Learning: The Failure of German University. Macmillan, New York, 1948