UM CONVITE...

Quando uma sociedade é incapaz de criar as justificativas da sua existência, modifica imediatamente os mecanismos de produção das ideologias. A universidade sempre foi um desses mecanismos. Mas se a universidade já não pode mais dar resposta ao atual estágio de dominação, é porque de alguma forma as pessoas começaram a despertar. Deixaremos mais uma vez os soníferos discursos das modernizações conservadoras nos colocarem na cama ou nos levantaremos definitivamente? Fazemos, então, um convite à rebeldia e à criatividade. Não podemos aceitar a velha universidade burocratizada, nem a UNIVERSIDADE NOVA colonizada. Construamos nós, junto aos trabalhadores, a Universidade Popular!

COMUNA


terça-feira, 11 de dezembro de 2007

MINHA UNIVERSIDADE
[Maiakovski]

Conheceis o francês
sabeis dividir,
multiplicar,
declinar com perfeição.
Pois, declinai!
Mas sabeis por acaso
cantar em dueto com os edifícios?
Entendeis por acaso
a linguagem dos bondes?
O pintainho humano
mal abandona a casca
atraca-se aos livros
e as resmas de cadernos.
Eu aprendi o alfabeto nos letreiros
folheando páginas de estanho e ferro.
Os professores tomam a terra
e a descarnam
e a descascam
para afinal ensinar:"Toda ela não passa dum globinho!"
Eu com os costados aprendi geografia.
Os historiadores levantam
a angustiante questão:
- Era ou não roxa a barba de Barba Roxa?
Que me importa!
Não costumo remexer o pó dessas velharias!
Mas das ruas de Moscou
conheço todas as histórias.
Uma vez instruídos,
há os que se propõem a agradar às damas,
fazendo soar no crânio suas poucas idéias,
como pobres moedas numa caixa de pau.
Eu, somente com os edifícios, conversava.
Somente os canos de água me respondiam.
Os tetos como orelhas espichando
suas lucarnas atentas
aguardavam as palavras
que eu lhes deitaria.
Depois
noite a dentro
uns com os outros
paravam
girando suas línguas de cata-vento.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

EDUCAÇÃO SUPERIOR E IDEOLOGIA:
O CURRÍCULO DAS UNIVERSIDADES ENQUANTO INSTRUMENTO DE MANUTENÇÃO DAS RELAÇÕES CAPITAL X TRABALHO

Luciana Silva - Militante do DAADM (UFBA) e da COMUNA
[Texto apresentado no EBEM - Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo]

Esta apresentação tem como objetivo precípuo discutir como, historicamente, a construção da educação de nível superior esteve atrelada aos interesses do capital, favorecendo a manutenção das relações capital x trabalho. A partir desta crítica, seria pautada a construção de um outro modelo de universidade, a partir dos movimentos sociais de base, e que estaria direcionada ao atendimento dos interesses do trabalho, na dialética da sociedade.

Introdução

A educação, enquanto construto social e histórico está relacionada a estruturas econômicas e ideológicas que se encontram fora dos prédios das escolas ou das universidades. Para Tonet (2007), a educação quando tomada sob a perspectiva da categoria do trabalho, passa a ser indissociável dela (assim como a linguagem e o conhecimento) e este processo de apropriação por parte dos indivíduos, do patrimônio cultural, não poderia deixar de ser atravessado pelos antagonismos sociais. Isto por causa do modo como os tipos de recursos e símbolos culturais, selecionados e organizados pelas escolas, estão dialeticamente relacionados com os tipos de consciência normativa e conceitual exigidos por uma sociedade estratificada.

A associação entre a educação e os interesses do capital fica evidente a partir da segunda fase da revolução industrial, quando passa a ser exigido do trabalhador que este detenha um conhecimento mínimo para manipular as máquinas da linha de produção. É neste ponto da história que se constrói a relação entre a escola e/ou a universidade enquanto instituição e a reprodução das desigualdades no âmbito da sociedade. As universidades, segundo sociólogos do currículo, não apenas “preparam” as pessoas: elas também “preparam” o conhecimento.

Para Williams (1975), as universidades, através de seus currículos que são construções simbólicas decorrentes de interesses de classe muito concretos, desempenham a função de agentes da hegemonia cultural e ideológica, são instrumentos da tradição seletiva e da incorporação cultural. Longe de fomentar aqui, teorias conspiratórias de cunho classista, faz-se necessário reconhecer que a estrutura constitutiva dos currículos das universidades em geral acha-se centrada em torno do consenso e que este, além de refletir uma das tendências vulgares do neoliberalismo (a via única, “imortalizada” pelas palavras de Tatcher) resulta dos interesses dominantes dos que escreveram a história e construíram não apenas a estrutura física como a ideológica das universidades – homens, brancos, anglo-saxões.

São poucas as tentativas sérias de tratar dentro das estruturas curriculares do conflito (de classes, científico, ou outros), sendo tais estruturas vazias de reflexões críticas, a-históricas, parciais e possuidoras de carga ideológica, características que são escamoteadas pelo discurso positivista da neutralidade. Contudo, a tradição seletiva prescreve que não seja ensinado ou irá seletivamente reinterpretar (e, portanto, irá em seguida ignorar) a história da classe operária, dos negros, a história indígena ou a história da mulher. No entanto, são ensinadas a história das elites e a história militar imiscuídas da cultura do “sucesso” e da “vitória”, imprescindíveis a uma sociedade competitiva e individualista bem ao gosto do capitalismo moderno (APPLE, 1982).

Parafraseando Tragtenberg: “Universidade e Hegemonia”

Todo o processo descrito sucintamente na seção anterior irá culminar no paradigma básico da educação: a força de trabalho passa então a ser formada fora do processo de trabalho, nas escolas e universidades.

Predominando formas pré-capitalistas de trabalho, a exigência de qualificação formal do trabalhador é inexistente; predominando o capitalismo, nas chamadas funções de supervisão exige-se diploma universitário. Aí se coloca a função intelectual: não só produzir mesmo no plano simbólico, como conduzir a direção moral e intelectual da sociedade de classes, legitimando com seu saber o poder existente e sua distribuição desigual (TRAGTENBERG, 1990, p. 61).

Em tal contexto, a atividade social – na qual a educação desempenha um papel particular – está diretamente vinculada ao programa mais amplo das instituições que distribuem os recursos (culturais, econômicos, etc.), de modo que alguns grupos e classes sociais têm sido historicamente favorecidos, ao passo que outros têm recebido tratamento menos adequado. É sob este aspecto que se evidencia que a educação, sobretudo o ensino superior, elitizado e perversamente seletivo, funciona como um instrumento de manutenção das desigualdades dentro da sociedade capitalista, como bem coloca Tragtenberg:

[...] Aí a educação irá funcionar como o grande mecanismo de exclusão, a escola irá realizar e garantir a hegemonia dos setores dominantes na medida em que dela são excluídas as grandes massas rurais e ponderáveis massas urbanas. [...] Nesse sistema insere-se a Universidade. Ela é a porta que dá acesso ao desempenho às funções hegemônicas, obedecendo ao processo de industrialização, onde a alta densidade tecnológica implica funções de supervisão exercidas por “acadêmicos”. Ao definir uma distribuição diferencial do saber, ela reproduz a distribuição diferencial do poder econômico e político, perpetuando através da “cultura da desconversa”, o ensino do irrelevante, que leva à exclusão de grandes massas de estudantes pelo desinteresse que os cursos apresentam, assim realizando as funções de hegemonia dos setores dominantes. Dessa forma, transforma a dominação de fato em dominação de direito, a desigualdade social em natural (1990, p. 62).

O resultado não poderia ser outro: o papel das universidades “reduz-se à criação de mão-de-obra ‘superior’ e requerida pelo sistema, sem mais nada, sem fantasia” (TRAGTENBERG, 1990, p. 62). Dentro da sociedade capitalista a educação (não apenas a superior, mas em todos os níveis) passa a ser encarada como um produto/serviço e a instrumentalização do ensino atinge seu ponto mais crítico a partir do momento que se constrói e consolida o consenso de que o ensino superior é meramente uma etapa da qualificação profissional, uma forma de viabilizar a ascensão social dos menos favorecidos sem necessariamente promover o descenso das classes privilegiadas através da redistribuição de renda. Tal discurso se coaduna plenamente – como não poderia deixar de ser - com os aspectos gerais da sociedade de consumo individualista promovida pelo capital.

A ênfase superacentuada no indivíduo em nossa vida educacional, emocional e social é idealmente adequada para manter uma ética manipulativa do consumo e o retraimento da sensibilidade política e econômica. Os efeitos latentes de se fazer do indivíduo um absoluto e de se definir o papel dos profissionais enquanto técnicos neutros a serviço da melhoria, por conseguinte, tornam quase que impossível que se desenvolva nas universidades, com os modelos de currículos atuais, engessados pelos interesses do capital, uma análise aguda da injustiça social e econômica. Os currículos e as práticas pedagógicas de ensino tornam-se relativamente impotentes para explorar a natureza da ordem social de que fazem parte.

Por uma outra universidade, para além dos marcos do capital...

Neste breve espaço, não se tenciona apresentar a construção de um outro modelo de universidade e grade curricular, que vá se contrapor ao modelo hegemônico vigente. Pelo contrário, antes, nos interessa aqui contribuir para o debate acerca das possibilidades de construção de uma universidade voltada para o trabalho, para o trabalhador e para a sociedade. Este modelo, de fato, não deve se ater às teorias e discussões da academia. Muito pelo contrário, passa pela urgente necessidade de se desencastelar a construção do conhecimento acadêmico em todos os níveis, não numa apologia irresponsável do obscurantismo ou do empiricismo vulgar, mas, antes e, sobretudo, reconhecendo que existe na universidade a carência de uma práxis pautada no conhecimento da materialidade social dos homens e que seria indispensável para a compreensão do movimento dialético da ação pedagógica no que esta possui de determinações concretas para a formação ou deformação humana.

São inúmeros os estudos sobre a construção do conhecimento em associação com os movimentos sociais de base. Um exemplo interessante são os escritos de Caldart (Apud SILVA, 2007) acerca do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) enquanto sujeito pedagógico. O desafio posto, talvez um dos mais recorrentes para aqueles que trabalham ou militam junto aos movimentos sociais na contemporaneidade, é, justamente, como fazer com que estes atores se apropriem do processo de construção do conhecimento dentro da sociedade, enquanto protagonistas e não apenas meros coadjuvantes ou, ainda, objetos num processo de legitimação da hegemonia existente. Para compreender essas relações hegemônicas, cumpre lembrar algo sustentado por Gramsci – de que existem duas condições necessárias para a hegemonia ideológica. Não se trata apenas de que nosso sistema econômico produz categorias e estruturas de sentimentos que saturam nossa vida cotidiana. Ligado a isso deve haver um grupo de intelectuais que empregam e conferem legitimidade às categorias, que fazem com que as formas ideológicas pareçam neutras. Como alternativa a este modelo excludente e classista, que vem se reproduzindo historicamente, cabe ressaltar a discussão sobre o movimento social enquanto princípio educativo, que dialoga com as questões de origem da pedagogia moderna, principalmente com a questão do trabalho como princípio educativo (SILVA, 2007). Este movimento dialógico é condição necessária para a construção de outro modelo: o da Universidade Popular, a qual não cabe (ainda) em palavras, posto que sua definição prescinde do debate e da apropriação acerca do tema por parte dos seus protagonistas: os expropriados, esquecidos e excluídos, os “sem” (sem terra, sem teto, sem emprego, sem educação), produzidos pelo atual modelo de sociedade (e universidade).

Últimos Acenos

Do exposto até aqui, uma das conclusões mais pertinentes é a de que não é fortuito o conhecimento que se introduziu nas universidades no passado e que ainda hoje se introduz. É selecionado e organizado em torno de conjuntos de princípios e valores que provêm de alguma parte, que representam determinadas visões de normalidade e desvio, bem como os interesses sociais que em geral orientaram a seleção e organização dos currículos. Apple, em uma análise bastante lúcida, chama atenção para o fato de que esta manipulação dos conteúdos e significados que são disseminados através do ensino formal na verdade precedem o ensino superior, estando presentes desde os níveis básicos da educação:

O controle social e econômico ocorre nas escolas não somente na forma de áreas de conhecimento que as escolas possuem ou nas tendências que encaminham – as regras e as rotinas para manter a ordem, o currículo oculto que reforça as normas de trabalho, obediência, pontualidade, e assim por diante. O controle é exercido também através das formas de significado que a escola distribui. Isto é, o “corpus formal do conhecimento escolar” pode se tornar uma forma de controle social e econômico.

As escolas não controlam apenas pessoas: elas também ajudam a controlar significados. Desde que preservam e distribuem o que é considerado como conhecimento legítimo – o conhecimento que todos devemos ter -, as escolas conferem legitimação cultural ao conhecimento de grupos específicos (1982, p. 98).

Claro está que, através de suas atividades curriculares, pedagógicas e de avaliação, na vida cotidiana nas salas de aula, as universidades (e não diferente destas, as escolas), no modelo presente, desempenham um papel importante na preservação, senão na criação dessas desigualdades. Associada a outros mecanismos de preservação e distribuição cultural, as instituições de ensino superior contribuem para a reprodução cultural das relações de classe em sociedades industriais avançadas. E já passa da hora de se tornarem um dos meios de emancipação da classe trabalhadora, nomeadamente se tivermos em conta que a cultura popular faz parte de sistemas populares de vida e de representação da vida, e têm uma lógica e densidade dentro da própria sociedade, não podendo ficar à parte do processo de construção da ciência e do conhecimento. Reinventar a educação é urgente além de que é preciso dessacralizá-la para torná-la socialmente útil, não ao capital, mas aos trabalhadores e aos movimentos sociais que estes compõem e acreditar ainda que, diferentes tipos de homem criam diferentes tipos de educação, de método e de currículo.


Referências:

APPLE, Michael W. Ideologia e Currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Campinas: Boitempo, 2002.

SILVA, Roberta M. Lobo da. A dialética do trabalho no MST: A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes. Tese (Doutorado em Educação) - UFF: RJ, 2005.

TONET, Ivo. Educar para a cidadania ou para a liberdade? Perspectiva - Revista do Centro de Ciências da Educação da UFSC, Florianópolis, v. 23, p. 469-484, 2005.

TRAGTENBERG, Maurício. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1990.

WILLIAMS, Raymond. Base and superstructure in Marxist cultural theory. London: Routledge & Kegan Paul, 1975.